Silvio Tendler: A utopia não como um grande projeto político, mas como uma busca diária

LEONARDO VARELA MILREU

 
Silvio Tendler, o cineasta dos sonhos interrompidos, nos deixou, e com ele talvez se encerre um capítulo na maneira como o Brasil aprendeu a confrontar seus fantasmas na tela do cinema.
 
Diante da notícia de sua morte, nós somos convidados a revisitar sua imensa obra não mais apenas como um inventário das grandes derrotas políticas, mas como um testamento luminoso sobre uma forma mais resiliente e talvez mais verdadeira de esperança. O que seus filmes nos ensinam, e o que sua própria vida de dedicação confirma, é que a utopia talvez nunca tenha sido um grande projeto político a ser alcançado no fim da história, mas sim uma busca teimosa, diária e incansável, travada nos gestos de lembrar, de pensar e de resistir.
 
Nós nos acostumamos a ver seus documentários, como em “Jango” (1984) ou “Os Anos JK” (1980), como mártires de projetos nacionais, cujas visões de país foram esmagadas pela engrenagem da história. A lente de Silvio Tendler nos oferece algo mais profundo do que a simples melancolia do que foi perdido. Ao mergulhar nos arquivos, ele não resgatava apenas o plano de governo ou o discurso final, mas a pulsação do cotidiano daquelas buscas, a energia dos comícios, a seriedade das reuniões, a fé anônima de milhares de pessoas que participavam daquela construção diária. A utopia ali retratada não era o Brasil prometido por Juscelino ou as Reformas de Base de João Goulart, mas o próprio ato de acreditar e trabalhar coletivamente por elas, a prática diária de construir um futuro que, mesmo nunca tendo chegado por inteiro, existiu vibrantemente em cada um daqueles dias.
 
Essa busca por uma utopia cotidiana se torna ainda mais clara quando Silvio Tendler afasta sua câmera dos palácios do poder para focar na força do pensamento, como fez em “Encontro com Milton Santos” (2006). Ali, nós descobrimos que a construção de um Brasil melhor não dependia apenas de um líder ou de um partido, mas do exercício diário e rigoroso da inteligência, da capacidade de ver o mundo a partir de nossa própria perspectiva. A utopia de Milton Santos, e por extensão a que Silvio Tendler nos apresenta, é a soberania intelectual, a pequena revolução que acontece quando nós ousamos analisar a globalização a partir do lado de cá, transformando o conhecimento em uma ferramenta de libertação. É a prova de que a busca por um mundo mais justo também é travada na solidão de uma biblioteca, na formulação de uma nova ideia, no ato de ensinar e aprender.
 
Na verdade, a própria vida de Silvio Tendler foi a mais perfeita tradução dessa utopia praticada no dia a dia, pois seu grande projeto foi o próprio cinema. Sua militância não se deu em palanques, mas na ilha de edição, sua arma foi a câmera e sua trincheira foi a sala de arquivos, onde ele travou uma batalha diária e obstinada contra o esquecimento, o inimigo maior de qualquer projeto de futuro. Cada filme que ele nos entregou foi uma vitória, um fragmento de utopia concretizado, uma peça de memória salva da erosão do tempo e do revisionismo, e ao fazer isso, ele nos convidava a participar dessa mesma busca, a nos tornarmos, junto com ele, guardiões de nossas próprias histórias.
 
Agora que o artífice da memória se tornou ele mesmo memória, nós compreendemos que seu legado não é um mapa para uma terra prometida que nunca alcançamos, mas um diário de bordo de uma jornada que não pode parar. Silvio Tendler nos mostrou que os grandes projetos podem ruir, os heróis podem tombar e a frustração pode parecer o sentimento definitivo, mas a busca pela utopia sobrevive nos atos cotidianos de quem se recusa a esquecer, de quem insiste em pensar e de quem continua, contra todas as evidências, a construir o amanhã, hoje. Sua obra e sua vida se fundem nesse ensinamento final, uma homenagem não aos sonhos que morreram, mas à teimosia imortal de continuar sonhando.
 
Silvio Tendler foi, sem dúvida, um de nossos imprescindíveis, tal qual diria Brecht.

 

Leonardo Varela Milreu é comunicador e crítico de cinema. Postado originalmente em seu blog.