O deputado Monteiro Lopes e o Crioulo Dudu

Eduardo das Neves, o Crioulo Dudu

O leitor, provavelmente, já ouviu falar em Eduardo das Neves, pai de Cândido das Neves (o grande seresteiro, violonista e compositor de Noite cheia de estrelasEntre lágrimasE nada mais!…Rasguei o teu retrato e Página de dor).

Mas não apenas porque Eduardo das Neves foi pai de Cândido das Neves. Ele também foi um dos principais cantores nos primórdios da indústria fonográfica do Brasil, compositor e palhaço de circo (além de guarda-freios e bombeiro). Foi, inclusive, o segundo cantor a gravar um compositor conhecido (já naquela época) como “Sinhô” (o primeiro foi o também famoso Bahiano).

Alguns que solfejam “Oh, Minas Gerais”, certamente não sabem que a música foi composta (e gravada) por Eduardo das Neves – em homenagem, não ao Estado, mas ao navio, o encouraçado que era a nau capitânia da Marinha de Guerra do Brasil.

Mas o leitor certamente lembrará que Eduardo das Neves foi autor, em 1902, de uma famosa música em homenagem a Santos Dumont (“A Europa curvou-se ante o Brasil/ E clamou parabéns em meio tom./ Brilhou, lá no céu, mais uma estrela/ Apareceu Santos Dumont“), cantada pelos chorões do Rio de Janeiro, reunidos por Eduardo, na serenata feita em homenagem a Santos Dumont, que morava em Paris, mas estava em visita ao Brasil. Esta serenata foi no dia Sete de setembro de 1903 e, além de Eduardo, participaram dela, entre outros, Quincas Laranjeiras, Sátiro Bilhar, Mário Cavaquinho e Chico Borges.

A música não tem a ver com o 14-bis, que só levantaria voo em 1906, mas com o contorno da Torre Eiffel pelo Dirigível Nº 6, em 1901, façanha que valeu o Prêmio Deutsch de la Meurthe a Santos Dumont.

Eduardo das Neves, que se chamava, a si próprio, de “Crioulo Dudu”, compôs dezenas de músicas, em geral gravadas por ele mesmo, ou por outros cantores da época, na Casa Edson, de Fred Figner.

Como ele mesmo comentou, seus temas eram o cotidiano do Brasil. Por exemplo, em 1910, compôs, e gravou, “Os Reclamantes”, sobre a Revolta da Chibata:

Neste Rio de Janeiro
Fez-se grande confusão
Soldado marinheiro
Fez uma revolução.
Eram os chefes reclamantes
Da maruja amotinada
Por eles o grito incessante
Era a Marinha revoltada
Houve grande correria
Todo o povo no receio
Por toda parte dizia
Vai haver um bombardeio
Durante aqueles três dias
Viu-se tudo em correria
Só dominava o terror
O comércio fecha a porta
Quando vê o caso sério
Ficando a cidade morta
Parecia um cemitério
E soldado e armamento
Nosso Rio de bloqueio
Só à espera do momento
Do falado bombardeio
Cão com sorte não ladra
Do desgosto não espanta
Tive que aturar a sogra
Num ataque de “demência”
No chão atirou um cinzeiro
A tomar agudos ais
Vou morrer no bombardeio
Do navio Minas Gerais
Com os raios, ouvi da sogra
Com essa revolução
Imaginem uma sogra
Com receio de canhão
João Cândido de fama
Marujo de opinião
Mandou um radiograma
Para o chefe da Nação
E o nosso presidente
Ganhou logo simpatia
Um decreto baixa urgente
Concedendo anistia
Tudo volta a seus lugares
Já ninguém mais tem receio
Muito embora
Já não haja bombardeio
Tudo foi e acabou-se
Não há nada mais a temer
A revolta já findou-se
Vamos todos
Viva o povo, viva a Pátria
Do auriverde pendão
Viva os chefes de Armada
Viva o chefe da Nação

O Crioulo Dudu morreu em 1919, na casa de seu filho mais famoso, Cândido das Neves, que, na época, era tipógrafo. Sua última gravação foi o samba “Só por amizade”, de Sinhô (“Tens vontade de sambar/ Não precisas te esconder!/ Pois, só por amizade, oh, meu bem/ É que podes aprender!”).

Se o Crioulo Dudu não é um completo desconhecido para você, leitor, tememos que o deputado Monteiro Lopes – aliás, Manuel da Motta Monteiro Lopes – esteja nessa categoria.

Abolicionista, ele foi, depois da República, o primeiro deputado federal assumidamente negro da História do Brasil. Sua ação foi impressionantemente progressista, em geral voltada para o fim da discriminação aos ex-escravos e, durante o pouco tempo em que foi parlamentar (morreu um ano após tomar posse, em 1909, como deputado federal), lutou por uma legislação trabalhista que somente se concretizaria com a Revolução de 30.

Pernambucano, filho de operário, conseguiu formar-se em Direito na famosa Faculdade do Recife.

Ao transferir-se para o Rio, elegeu-se vereador, com a plataforma de defesa dos direitos dos operários e ataque ao “bota abaixo” do prefeito Pereira Passos. Mas, naquela época, prevalecia o infame “reconhecimento de mandatos”, imposto pelo governo Campos Sales. Assim, mesmo reeleito, Monteiro Lopes não teve seu mandato reconhecido.

Em 1905, candidatou-se a deputado federal. Outra vez eleito, não teve seu mandato reconhecido.

Foi, então, que ingressou no Partido Republicano Democrata, uma agremiação cujo programa incluía a ampliação da instrução pública, do sufrágio popular e o protecionismo econômico.

Em 1909, candidatou-se outra vez a deputado federal – e elegeu-se, mas os rumores eram que Afonso Pena, o presidente, e o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, iriam vetar seu nome, forçando o Congresso a não reconhecê-lo.

O motivo era a sua cor – mais até do que o fato de não ser um político governista.

A polêmica tomou a imprensa e o movimento de massas (que existia). Se consultarmos uma coleção das revistas humorísticas da época (O Malho, Fon Fon, Careta), veremos como foi asquerosa a campanha racista desencadeada contra Monteiro Lopes.

Entretanto as entidades operárias se tornaram o núcleo do movimento – em sua maioria, negro – pelo reconhecimento do mandato de Monteiro Lopes. Do Rio até Campinas, Pelotas e Santa Maria, estendendo-se ao norte, até a Bahia e Pernambuco, houve manifestações pelo reconhecimento do mandato de um deputado eleito pelo Distrito Federal.

No final de abril de 1909, o mandato de Monteiro Lopes foi, finalmente, reconhecido, no que foi considerado o maior triunfo negro e popular após a Abolição.

Os projetos de Monteiro Lopes na Câmara são bem definidos – e foram, todos, derrotados pela maioria reacionária. Entre eles:

– a criação do Ministério do Trabalho;

– lei sobre os acidentes de trabalho e outros benefícios aos trabalhadores, como aposentadorias, pensões e aumento dos vencimentos;

– legislação e fiscalização sobre o trabalho dos menores;

– erigir, no Rio, uma estátua de José do Patrocínio.

No início de 1910 o ‘deputado negro’, como era conhecido, viajou a várias cidades do Sul, Norte e Nordeste do Brasil, bem como a Campinas e adjacências, para agradecer o apoio à sua diplomação. O autointitulado republicano, socialista, ‘deputado do povo’ e ‘defensor do operariado’ foi recebido por multidões de homens, mulheres e crianças negras com festas, bandas de música, banquetes e comícios. A partir de alguns de seus discursos nessas viagens é possível entrever noções de cidadania, república e liberdade e do que era ser negro na jovem república. No dia 22 de janeiro de 1910, em discurso feito em Porto Alegre, inflamou uma pequena multidão ao dizer que os negros não deveriam ter vergonha de ser negros, que deveriam instruir e educar seus filhos para que pudessem ocupar as mais altas posições no país, já que a Constituição republicana, em seu artigo 72, lhes garantia a igualdade perante a lei. Segundo o deputado, o ódio e a distinção de raças deveriam ser rechaçados nas escolas, na imprensa, no parlamento e em comícios populares. Incentivou os cidadãos que se sentissem discriminados a recorrer aos poderes públicos para acabar com tal abuso” (Carolina Vianna, LOPES, Monteiro, FGV).

O que transcrevemos abaixo é a parte inicial do livro “Monteiro Lopes e Eduardo das Neves: histórias não contadas da primeira república”, de Martha Abreu e Carolina Dantas (Eduff, 2020).

O livro, primeiro volume da “Coleção Personagens do pós-abolição: trajetórias, e sentidos de liberdade no Brasil republicano”, é primoroso.

Agradecemos ao maestro Marcus Vinicius de Andrade pelo envio da obra.

C.L.

Monteiro Lopes e Eduardo das Neves

MARTHA ABREU E CAROLINA DANTAS

No dia 13 de maio de 1909, como em anos anteriores, comemorava-se na cidade do Rio, então capital da República, mais um aniversário da Abolição da escravidão, realizada em 1888. O ano de 1909, contudo, parecia especial, pois também se festejava a entrada na Câmara dos Deputados do primeiro político que assumia, em público e com orgulho, ser negro: Manoel da Motta Monteiro Lopes (PE, 1867 – RJ, 1910). Por sua vez, Eduardo das Neves (RJ, 1874 – RJ, 1919), que se autoproclamava, com ousadia, o “Crioulo Dudu”, também havia participado das comemorações com suas músicas e versos.

Monteiro Lopes e seus companheiros organizaram atividades nas áreas centrais da cidade, conseguindo a colaboração de muitas pessoas, comerciantes e entidades. A partir do Jornal do Brasil de 14 de maio daquele ano, localizamos uma descrição completa de como foi a festa. O ministro da Marinha disponibilizou bandas de música para o evento, assim como os Bombeiros e o Exército; a Light cedeu bondes gratuitamente e os edifícios públicos foram iluminados especialmente para a data. Os comandantes dos navios de guerra leram aos seus subordinados (entre os quais, havia muitos negros) “patrióticas ordens, comemorando a lei que […] igualou todos os brasileiros”. Nos cinemas do Centro e dos subúrbios da cidade do Rio foram exibidas fitas “de apoteose à grande data, apresentando diversos retratos de heróis abolicionistas”. No parque da Praça da República festas escolares homenagearam a Lei Áurea. Em várias igrejas, principalmente, naquelas que abrigavam irmandades negras, rezaram-se missas pelos abolicionistas mortos e “pelo feliz resultado” da eleição de Monteiro Lopes. Na Câmara aconteceu uma sessão solene e o orador oficial do evento disse em seu discurso: “[…] que a entrada de Monteiro Lopes para o parlamento brasileiro era uma afirmação de que o preto, através do desenvolvimento do Brasil, aparecia sempre como elemento de força e de civismo em todos os poderes da pátria”.

Esse tipo de celebração – acompanhada de bandas, iluminação e decoração nos prédios, discursos acalorados e missas – era comum nas festas públicas e cívicas realizadas na cidade. O que surpreende é o fato de essas celebrações terem ocorrido em comemorações pelos 21 anos da Abolição e pela posse de um deputado negro, nas quais também houve espaço para denúncias de discriminação racial e para a afirmação da importância de mulheres e homens negros na História, na cultura, na República e na nação.

Por muito tempo nos acostumamos a enxergar a Primeira República (1889-1930) como um período negativo – por isso ficou conhecida como República Velha – no que diz respeito ao exercício da cidadania da população, seja em termos da participação política eleitoral ou do direito a expressões culturais próprias e distantes dos valores europeus. Estamos habituados a versões históricas sobre a Primeira República – ainda presentes nos livros didáticos – que defendem o domínio quase absoluto de políticas voltadas para a europeização dos costumes e para a repressão aos movimentos políticos, sociais e culturais dos setores populares e negros. Se, de fato, essas políticas foram reais e marcantes, elas não foram a única história desse período.

Pesquisas recentes têm ajudado a dar visibilidade a diferentes experiências, no campo político e cultural, demonstrando a existência de muitas histórias de afirmação cultural, política e racial e de luta antirracista, silenciadas e não contadas, como as que iremos apresentar neste livro. Neste sentido, começa a ser possível entender por que, até há pouco tempo, desconhecíamos as dimensões das histórias de Monteiro Lopes e Eduardo das Neves. Junto com muitos outros personagens negros, eles foram esquecidos por historiadores que se dedicaram ao estudo da Primeira República nos campos da política e da música popular no Brasil. Nosso esforço é exatamente buscar romper com essas lacunas e silenciamentos.

Aquela festa do 13 maio de 1909 teve mesmo um caráter especial. Ainda sob a supervisão de Monteiro Lopes, organizou-se uma romaria ao túmulo de José do Patrocínio no Cemitério do Caju. A Gazeta de Notícias, no dia seguinte ao evento, registrou a presença de muitos trabalhadores, sindicatos, irmandades negras, abolicionistas e republicanos históricos, entre outros simpatizantes. Lá chegando, o sr. Israel dos Santos, segundo o jornal “o decano dos abolicionistas”, deu a palavra a Monteiro Lopes. Em seguida, “fez-se um profundo silêncio entre os romeiros e o dr. Monteiro Lopes começou a falar”.

Diante do túmulo de José do Patrocínio – que além de jornalista, fundador da Academia Brasileira de Letras, também foi vereador na cidade do Rio – exaltou o “herói do 13 de maio” e jurou defender sua “[…] raça fraca e oprimida diante dos insubmissos que ainda não compreenderam que a lei do 13 de maio de 1888 firmou a igualdade dos brasileiros”. Destacou ainda o fato de ter enfrentado como adversário, nas eleições de 1909, o conselheiro Andrade Figueiredo, o “maior escravagista, que nem ao menos, momentos antes da passagem da lei de 13 de maio, se converteu ao credo abolicionista”. E, assim, declarou “a suprema glória” que sentia de por “mais uma vez […] ter dado combate ao último reduto do escravagismo”. Interrompido diversas vezes por aplausos, terminou seu discurso defendendo a construção de uma estátua de bronze em homenagem a Patrocínio e dando vivas à República, que, segundo ele, buscou o seu próprio “nascimento no ocaso do sol de 13 de maio!”

Em seguida, ouviu-se o discurso de Lopes Trovão – branco, abolicionista, líder histórico republicano e militante em vários movimentos populares. Para ele, José do Patrocínio certamente estaria decepcionado com os rumos que a República havia tomado ao “perseguir o povo e confiscar os seus direitos”. Aquela não seria a República defendida por eles dois em seus “comícios populares” durante a Campanha Republicana: “[…] a república ainda não está feita”, ratificou. Em tom, ao mesmo tempo, pessimista e combativo, Lopes Trovão lembrou ao

[…] povo que não é somente a entrada do Dr. Monteiro Lopes na Câmara dos Deputados pelo voto unânime dos seus concidadãos […] que traduz fielmente os princípios democráticos apregoados por mim e José do Patrocínio […] muita coisa resta a fazer, porque a lei de 13 de maio igualou os direitos dos brasileiros, a república assegurou as garantias constitucionais, o que até hoje não se tem feito nem mesmo há esperanças de fazer. O que está aí não é república […].

Ainda de acordo com a Gazeta de Notícias, Lopes Trovão foi “delirantemente aplaudido”. Depois foi a vez do professor Rego Medeiros, sobre o qual temos poucas informações. Apelando para o simbolismo abolicionista, levou consigo uma palma de samambaia e camélias brancas e lembrou que a eleição de Monteiro Lopes “era um dos maiores triunfos conquistados pela lei de 13 de maio […]”. Por isso, não se podia aceitar que, depois da Abolição, a República viesse a estabelecer distinção “de classe e de cores” e impedisse que Monteiro Lopes – “o tipo clássico do negro nacional” – entrasse no parlamento. Afinal, segundo Medeiros, todos os brasileiros teriam “sangue africano” nas veias e, por isso, louvava José do Patrocínio e sua “obra política”, que teriam aberto o caminho para a entrada de um homem como Monteiro Lopes na Câmara dos Deputados. As comemorações prosseguiram por todo o dia.

Como indicou a historiadora Ângela de Castro Gomes, a Abolição e a República tornaram realidade o princípio da equidade política no Brasil. E ainda que não tenham proporcionado conquistas amplas, a garantia formal da igualdade civil foi um marco importante no processo de conquista dos direitos de cidadania no Brasil. Nem a restrição do voto aos alfabetizados, as fraudes nas eleições, as práticas políticas coronelísticas e oligárquicas impediram, como veremos, as lutas em busca de ampliação dos espaços de expressão, afirmação e participação da população negra.

Se partirmos de um olhar que busca resgatar a imprevisibilidade da História, é possível identificar que para os artistas, intelectuais, políticos e trabalhadores negros citados neste livro, a República não era uma batalha perdida, fadada ao fracasso. Havia expectativas quanto às possibilidades de inclusão e foi esse o caminho que buscaram trilhar nos palcos, na imprensa, nos comícios em praça pública, nas gravadoras de discos, nos clubes recreativos, nas associações e irmandades negras, nos terreiros, nas festas e folias, e no parlamento.

Assim, paralelamente à festa organizada por Monteiro Lopes em 1909, a Liga de Educação Cívica da cidade do Rio de Janeiro também promoveu alguns eventos em homenagem à Abolição. A convite da Liga, o músico negro Eduardo das Neves apresentou-se no bairro do Méier, no subúrbio, onde executou suas cançonetas e modinhas ao violão e ao piano. Por que um músico negro estaria apresentando-se em uma celebração pela Abolição organizada por um grupo preocupado com a educação cívica da cidade-capital?

Conhecido como “crioulo Dudu”, posto que ele próprio assim se chamava, Eduardo das Neves fazia presença onde chegava. Já bastante conhecido, deve ter ajudado a atrair muita gente aos eventos cívicos e festivos no Méier. Possuía uma voz tão poderosa que havia sido contratado pela Casa Edison para as gravações de músicas populares, lundus, cançonetas e hinos patrióticos, num período em que a indústria fonográfica, tecnicamente, só conseguia gravar vozes especiais. Com tantos atributos vocais, deve ter sido impactante ouvi-lo no evento de maio declamando Castro Alves, poeta que combateu a escravidão e criou versos cheios de emoção, ótimos para serem declamados.

A poesia “Lúcia, a escrava” foi escrita em 1868 e publicada em 1881. Mas, em 1909, ainda era lembrada nos eventos cívicos republicanos de celebração de mais um ano da Abolição. Com tintas românticas muito fortes, a poesia mostrava um dos aspectos mais dramáticos da escravidão. Lúcia, a escrava cativante de Castro Alves, passou pela dura experiência de ser vendida para longe, de não ser livre para viver o amor e de não ser dona do seu próprio destino. Intencionalmente, os sofrimentos da escravidão, personificados numa mulher escravizada, e os heróis da luta pela Abolição eram trazidos à tona para marcar – e não esquecer – a luta pela igualdade numa República que havia perpetuado diversas formas de desigualdade e discriminação racial.

(…)

Recitar o drama romântico de Lúcia no dia da festa nacional pela Abolição poderia significar, naquele momento, o compartilhamento de um passado comum que era para ser lembrado, tanto em função do martírio da escravidão, quanto em torno da atualização do marco da conquista da liberdade naquele momento, inclusive no campo das escolhas amorosas. A presença de Eduardo das Neves como intérprete era oportuna. Dudu, além dos dotes artísticos, era especialista em canções que falavam de amor; tornou-se conhecido pela divulgação de versos irreverentes que impressionavam positivamente moças de todas as cores e origens sociais. O exercício da liberdade também se relacionava com as livres escolhas amorosas.

Não conseguimos descobrir se Monteiro Lopes e Dudu mantinham laços de amizade para além da participação, se bem que em locais distantes, das festividades pelo 21º ano da Abolição. Mas, certamente um deve ter ouvido falar do outro, já que eram muito bem conhecidos por grande parte da população carioca e negra. Eram homens públicos e intelectuais com muita atividade: formularam projetos políticos e culturais, gerenciaram redes de interlocução e souberam divulgar suas ideias, movimentos, ações, livros, canções e performances antirracistas. Não por acaso eram figuras assíduas em vários jornais e revistas. Além disso, viveram a mesma República, apoiaram os mesmos heróis, possuíam amigos comuns e frequentavam os mesmos locais. Por mais que tenham construído trajetórias profissionais e lutas políticas não muito próximas, revelando as diferenças socioeconômicas e intelectuais que estabeleciam clivagens entre a própria população negra (Monteiro Lopes era bacharel em Direito e Eduardo das Neves não deve ter terminado o primário), enfrentaram o mesmo racismo, divulgado de forma poderosa em bases científicas após a Abolição da escravidão. Nessa experiência, no parlamento ou nos ambientes musicais, mostraram possuir muitas afinidades ao centrarem esforços na valorização da população negra na sociedade brasileira, sua história e indiscutível presença. Monteiro Lopes e Eduardo das Neves tinham sido abolicionistas, eram republicanos e não queriam esquecer os direitos obtidos, nem as conquistas, mesmo que ainda pequenas, pelo fim da escravidão.

Os atos públicos protagonizados por Monteiro Lopes e Dudu – promovidos em sua maioria por descendentes de africanos – tinham um sentido político estratégico. Seguramente, uma das intenções (ou desejo) de Monteiro Lopes e Eduardo das Neves era questionar as desigualdades raciais e afirmar publicamente (e musicalmente no caso de Dudu) a igualdade de direitos estabelecida com a Abolição e a República. Igualdade formal que deveria ser transformada em realidade.

Essas comemorações também evidenciam que o passado em comum de lutas pela liberdade, vigorosamente expostas em público e nas ruas durante a campanha abolicionista na década de 1880, era ainda um elemento presente nas formas de fazer cultura e política na cidade do Rio de Janeiro no início do século XX. Afinal, um dos principais desdobramentos da campanha abolicionista foi a entrada na cena política de escravizados, libertos e homens livres pobres, ocupando as ruas e os espaços públicos das cidades, como demonstrou a historiadora Maria Helena Machado. E, se considerarmos que registrar o passado em festas, músicas, homenagens e estátuas é estabelecer lugares de memória e avaliar as conquistas, Monteiro Lopes e Eduardo das Neves tinham mesmo muito em comum. Ambos se dedicaram a dar visibilidade à população negra na esfera pública, no âmbito da política e da cultura.

Em diálogo com outros movimentos políticos e culturais da cidade, como protestos, festas cívicas e carnavalescas, os descendentes de africanos estavam nas ruas – especialmente nas da capital da República: manifestavam-se contra o aumento de preços e a carestia, os baixos salários, as extenuantes jornadas de trabalho, as reformas urbanas e sanitárias, e contra o que, em geral, consideraram como arbitrariedades do governo e dos patrões; lutavam por igualdade de tratamento, espaços de atuação, visibilidade, reconhecimento e autonomia. Também marcavam presença nas folias carnavalescas e nas festas populares, como as da Penha. As pesquisas de Cecília Velasco Cruz, Marcelo Badaró, Flavio Gomes, Maria Clementina Pereira Cunha e Eric Brasil são ricas nesse sentido.

Para além da repressão policial, dos arranjos oligárquicos das elites, dos condicionantes racistas que estavam por toda a parte, podemos afirmar que, na Primeira República, mulheres e homens negros criaram espaços que ofereciam possibilidades de expressão, de participação política e até mesmo de representação na política formal; caminhos de valorização de sua história e cultura como brasileiras; e instrumentos de autoestima e de solidariedade racial. Compreender o que significavam esses espaços, entretanto, exige o alargamento do conceito de participação política, estendendo sua definição às atitudes, comportamentos e estratégias para além do exercício do voto ou dos resultados das eleições. Lutar por essas questões significava reafirmar direitos e interesses, redefinidos depois da Abolição (1888) e da Proclamação da República (1889).

Desse modo, as trajetórias de Monteiro Lopes e Eduardo das Neves lançam luz e dão voz aos esforços de indivíduos e grupos negros em negociar as possibilidades e os limites de sua cidadania. Em meio à diversidade da experiência de descendentes de africanos no período, centraremos a atenção em alguns aspectos de suas trajetórias, que trazem à tona importantes lutas políticas e culturais no Brasil do pós-Abolição. Na coluna “Gazeta Teatral”, do jornal a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro de 8 de maio de 1915, após a volta de uma das excursões de Das Neves pelo Brasil, a aproximação entre eles teria sido celebrada: “Eduardo das Neves é um crioulo genial, o Monteiro Lopes do violão, o Cruz e Souza do palco, o Othello da modinha”.

Monteiro Lopes era advogado e político. Protagonizou campanhas eleitorais na capital da República apoiado pelo meio negro; Das Neves, através de sua música, um efetivo canal político, reafirmou a presença dos negros na jovem República: discutia as relações raciais e não parecia querer esquecer o 13 de maio de 1888. Inclusive, Dudu gravou pela Casa Edison/Odeon, por volta de 1909, a canção Canoa virada, um hino à liberdade sob a forma de lundu, que discutiremos mais adiante.

 

Publicado originalmente na Hora do Povo.