LUÍSA LOPES (*)
Certa vez, em uma entrevista, Ettore Scola, disse: “o pessimismo é muito mais progressista que o otimismo, encerra mais fé no futuro. O otimismo é coisa de beatos.”
O cineasta, nascido em Trevico, em 10 de maio de 1931, acompanhou as mudanças e acontecimentos históricos da Itália e do mundo até o dia de sua morte, em 19 de janeiro de 2016. Seus filmes eram um retrato fiel – e, às vezes, sujo – de uma Itália em constante transformação. Diversos momentos de ebulição social, cultural e política do país, da segunda metade do século XX, estão ali sintetizados na obra de Scola. E sintetizar uma grande confusão, torná-la mais clara ao público, não é algo simples de se fazer.
A grande escola foi, naturalmente, o neorrealismo. Aqui se entende o neorrealismo não somente como um estilo cinematográfico, mas sim como um movimento cultural de cineastas, atores, escritores, músicos, enfim, uma organização coletiva. Neste coletivo, a troca de ideias era considerada fundamental para a reconstrução do cinema e do país, arrasado pela guerra. Era um grupo no qual se incluíam muitos que ainda iriam se tornar grandes cineastas após o declínio do neorrealismo, como Mario Monicelli e o próprio Ettore Scola. Reuniam-se, assistiam aos filmes, opinavam, se formavam dentro daquele quadro de renascimento cultural. A grande Suso Cecchi D’Amico, uma das roteiristas de “Ladrões de Bicicleta” (1948), afirmava que era muito comum que um filme tivesse a assinatura de diversos roteiristas. Para escrever o roteiro de “Ladrões…”, ela, Cesare Zavattini, Vittorio de Sica e Gerardo Guerrieri saíam às ruas de Roma em busca de entender a realidade do povo e assim poder retratá-lo da forma mais fiel possível. Isso porque toda a história dos melhores momentos do cinema italiano é repleta de uma equipe perfeitamente atenta e habilidosa, desde sua produção até o elenco de atores.
Perto de morrer, Ettore Scola lamentou que não houvesse mais essa troca de ideias (e ideais) entre os artistas da nova geração, mais determinados a trabalhar individualmente. Scola, como muitos outros de sua geração, era necessariamente coletivo, político, comprometido. Em sua filmografia, o indivíduo está sempre inserido em um contexto maior, condicionado a grupos sociais e econômicos que não podem ser ignorados.
Em “Nós Que Nos Amávamos Tanto”, a referência ao neorrealismo é, sem dúvida, a mais evidente, entre tantas referências. E evoca não só um movimento, mas uma sociedade que já não existe. Interpondo, grosso modo, a história da Itália com os movimentos cinematográficos, a Itália neorrealista era, com certeza, mais simples de se entender. Pobre, humilde, plena de sonhos e cujas ambições materiais não eram suficientes para lhes fazer trair seus valores. É o início da história dos três amigos, Gianni (Vittorio Gassman), Antonio (Nino Manfredi) e Nicola (Stefano Satta Flores), que integravam a resistência partigiana durante a guerra de libertação. Ao fim da guerra, cada um volta às suas cidades de origem e acompanhamos o desenvolvimento de suas histórias particulares durante os 30 anos seguintes.
Nicola Palumbo retorna à pequena cidade de Nocera Inferiore e se torna um professor idealista, apaixonado por cinema. Em uma das primeiras cenas, Nicola e sua mulher assistem ao filme “Ladrões de Bicicleta” no Fórum de Cinema de Nocera Inferiore, uma espécie de cineclube. Ao final da sessão, dá-se início ao debate e o Professor Caprigno, patrão de Nicola, demonstra sua completa indignação com o filme de Vittorio de Sica: “Obras como esta ofendem a graça, a poesia, o belo. Estas porcarias e estes lixos nos difamam perante o mundo. Destes maus filmes, bem falou um jovem católico de grande futuro, próximo a De Gasperi: ‘A roupa suja se lava em casa!’”
A frase “roupa suja se lava em casa” é atribuída a Giulio Andreotti, um dos principais nomes da Democracia Cristã. Muito antes de se tornar sete vezes primeiro-ministro, Andreotti foi subsecretário no Ministério do Espetáculo do governo De Gasperi, onde travou batalha contra um certo tipo de cinema nacional, a começar pelo neorrealismo e o retrato que este fazia da Itália perante o mundo. É também de Andreotti o comentário a respeito do filme “Umberto D.”:“Se no mundo se leva erroneamente a acreditar que “Umberto D.” é a Itália, De Sica terá prestado um serviço terrível ao seu país”. A batalha contra o neorrealismo vai apenas até meados da década de 50, quando o movimento entra em declínio, mas está claro que o conceito de cinema que Andreotti e o professor Caprigno queriam combater dizia respeito a qualquer cinematografia de relativa qualidade na Itália durante muitos anos após a queda de Mussolini. Compreender essa “intromissão” política na cultura de um país é fundamental para quem gosta de cinema e igualmente importante para entender a obra de Ettore Scola. A discussão entre Nicola e o diretor é decisiva para o destino do intelectual, que fica impedido de ensinar na cidade e parte para Roma, deixando mulher e filho para trás.
A interposição cinema/história existe a todo momento durante o filme, que diversas vezes retorna a Vittorio de Sica e seu “Ladrões de Bicicleta”, citado pelo personagem de Satta Flores como aquilo que traçou o curso de toda a sua vida futura. Chega a Roma convencido a defender seu ideal, e diz a Antonio que “não basta ser proletário, o intelectual está mais à frente, é inatingível!”. Nicola não quer e não precisa que ninguém concorde com ele, pois ele está acima disso. Quase ao fim do filme, conclui: “Achamos que mudaríamos o mundo, mas foi ele que nos mudou”. O excesso de ideologia aqui dá espaço ao esmagador peso da realidade que Nicola Palumbo, indivíduo isolado, não só não foi capaz de transformar como tampouco compreender. Seu discurso havia se afastado da classe trabalhadora, que ele pretendia libertar.
Antonio volta a Roma para trabalhar como auxiliar de enfermagem. Na vida dele, também o governo será determinante quando decide beneficiar os simpatizantes da democracia-cristã para os cargos mais altos do hospital, em detrimento dos partidários de esquerda, como é o caso do personagem de Nino Manfredi. Antonio é a verdadeira representação da classe trabalhadora em todo o filme. Aquela que sonha, mas não se corrompe, e que acaba sempre sendo desprezada no contexto geral. Ele se apaixona por Luciana (Stefania Sandrelli), mas ela o troca por Gianni. Os dois amigos brigam e só voltam a se reencontrar, por acaso, 25 anos depois. Já o amor por Luciana, não morre nunca.
O destino de Gianni Perego será amargo. De um advogado honesto, observamos enquanto ele se dobra às vontades de seu novo patrão, tornando-se rico e cada vez mais solitário. Percebemos mais uma referência ao cinema neorrealista na figura do ganancioso empreiteiro Romolo Catenacci, interpretado por Aldo Fabrizi. Conhecido como o padre antifascista Don Pietro em “Roma, Cidade Aberta” (Roberto Rossellini, 1945), aqui Fabrizi interpreta um homem que se gaba de sua esperteza e que, com a consciência tranquila, destila sua decadência moral – e física – como se a desonestidade fosse apenas uma questão de instinto de sobrevivência. Catenacci é a Itália da especulação e da malandragem, exemplo máximo da degeneração moral. Sua fala de que “quem vence a batalha contra a consciência, vence a guerra da existência” se opõe ao que representa Don Pietro – que, pouco antes de ser fuzilado pelos alemães, declara: “Difícil não é morrer bem, difícil é viver bem”. Aos poucos, Gianni vai se corrompendo, o que acaba por lhe custar caro. Ele abandona Luciana, por quem estava apaixonado, para se casar com Elide, filha de seu patrão.
Estão ali os três amigos: Gianni, Nicola e Antonio. Três classes sociais distintas, cujas mentalidades não mudaram muito ao longo dos anos, mas também não entraram em acordo. É uma Itália que se propõe a ser rica e desenvolvida mas, confusa, abandona os valores e o entendimento. Já as personagens femininas são as que representam o que há de mais positivo nessa situação. Elide, esposa de Gianni, é a única que demonstra uma evolução concreta: no início, uma mulher desengonçada e semianalfabeta, depois, adquire gosto pela leitura, corrige seus modos e exibe uma beleza que nós (assim como Gianni) só percebemos após a sua trágica morte. Elide avança, mas lamenta o fato de ter feito isso não por ela mesma, mas para agradar a um marido que nunca a amou de verdade. Tenta resolver seus problemas conjugais, mas encontra apenas a indiferença do marido. Luciana e Antonio, depois de muito tempo, vão se apaixonar novamente. Ao reencontrar Luciana após mais de duas décadas, um solitário Gianni diz: “Todos esses anos, não fiz outra coisa além de pensar em você”, ao que Luciana responde: “Mas eu não. Desculpe, Gianni”. Ela havia seguido em frente.
Assinam o roteiro, além do próprio diretor, a dupla Age & Scarpelli, dois gigantes da commedia all’italiana. A música é de Armando Trovajoli. Ettore Scola faz aqui uma carinhosa homenagem ao cinema, como faria em “Splendor” (1989) e “Que Estranho Chamar-se Federico” (2013), enquanto reflete sobre a perda de identidade do povo italiano. Conta também com uma participação de Federico Fellini e Marcello Mastroianni reencenando a filmagem de “La Dolce Vita” na Fontana di Trevi, além de uma cena hilária em que um homem confunde Fellini com Rossellini. Vittorio de Sica faz sua aparição através de registros antigos e também Monica Vitti, em cenas de “O Eclipse” (Michelangelo Antonioni, 1962). O cinema é mais um personagem do filme, é um ser vivo, testemunha de um momento histórico.
“Nós Que Nos Amávamos Tanto” está prestes a completar 50 anos de existência, e é um daqueles clássicos que nunca ficam velhos, nunca se tornou obsoleto. Pelo contrário, é uma obra que tem se mostrado cada vez mais avançada, à medida que o ser humano parece perder sua humanidade um pouco mais a cada geração. Retrato profundo da complexidade humana diante da realidade da vida e, acima de tudo, uma obra universal, pois não só os italianos podem se identificar com tal retrato. Seguimos em frente, sem esquecer que já fomos e, principalmente, quem iremos nos tornar.
(*) Texto lançado no livro “Clássicos do Cinema Italiano”, edição limitada organizada pela Versátil Home Vídeo em ocasião do lançamento da coleção de obras do cinema italiano em DVD.