LUÍSA LOPES (*)
Na vida, a liberdade é o que importa
Mas o homem inventou a prisão,
Códigos, leis e convenções
Trabalho, escritórios e casas também.
Não concorda?
Então, digamos
Meu velho amigo, a vida é bela,
Quando conhecemos a liberdade,
Não vamos esperar mais, vamos até ela,
O ar puro é bom para a saúde.
Em todo lugar, se você tentar
Em todo lugar, a vida é como música
Em todo lugar, há vinho e romance
A nós, a nós a liberdade!
Em 1942, Vinícius de Moraes, então crítico de cinema do jornal A Manhã, iniciou um embate entre os intelectuais brasileiros. O motivo chega a ser engraçado para nós que não vivemos naquela época: a defesa do cinema mudo. Dizem que a discussão mobilizou o Brasil. Os embates intelectuais da época eram um pouco mais lentos do que hoje em dia. Escrevia-se um artigo para um jornal e aguardava-se a resposta. Vinícius de Moraes foi um homem de muitos talentos mas, não há dúvidas, estava defendendo uma batalha perdida – além de tardia até para a época dele, já que essa discussão inicialmente aconteceu no final da década de 20 em outros países.
Embora pareça bobagem, quando assisti ao belo “A Nós a Liberdade”, pensei em Vinícius e em sua defesa do cinema mudo. René Clair também teve seus problemas com a chegada do cinema falado. Chegou a afirmar que “o som era a morte do cinema”. Junto a ele também estavam Chaplin, Pudovkin, Eisenstein, Fritz Lang… O problema principal estava na introdução dos diálogos, que poderiam fazer o cinema de então interromper o progresso alcançado e retroceder a uma época de teatro filmado. Clair realizou seus experimentos e o resultado está em seus primeiros filmes falados, em especial em suas comédias musicais deste período: “Sob os Tetos de Paris” (1930), “O Milhão” e “A Nós a Liberdade”, ambos de 1931, que lhe deram papel de destaque internacional.
É verdade que “A Nós a Liberdade” é um filme que marca uma transição entre o cinema mudo e o falado/sonoro. Conserva a linguagem cinematográfica da época muda em associação com a manipulação do som e da fala, o que o torna uma obra-prima de extrema criatividade. Ainda que o filme tenha em seus trejeitos o carimbo do cinema mudo, é difícil imaginá-lo sem sua exuberância musical.
Isso pode ser constatado logo no início do filme quando, na prisão, os detentos (observados de perto pelos guardas) trabalham na fabricação de brinquedos enquanto cantam uma canção. É lá que vemos pela primeira vez os nossos protagonistas Louis e Émile. Eles piscam um para outro pois têm um plano de fuga. Um consegue fugir, mas o outro fica para trás. Resumindo bastante a história, Louis, o que foge, se torna um rico diretor de uma fábrica de fonógrafos. Já Émile, depois de cumprir sua pena é detido novamente, desta vez, porque estava deitado ao sol ao invés de trabalhar. Trabalhar, afinal, é obrigatório. “O trabalho é liberdade”, como nos diz a canção que acompanha o filme.
A cena inicial da prisão tem a intenção de ser monótona e autoritária, mas não chega nem perto do que sentimos depois, com o trabalho na fábrica. Lá, a linha de montagem segue de acordo com a música, como uma coreografia uníssona que transforma toda a cena em um grande balé, mas é um balé decididamente opressor. Controlados por seus superiores e por grandes relógios de ponto, os operários marcham em direção às suas funções, que exercerão de forma totalmente apática. O trabalho, longe de ser libertador, torna-se uma prisão pior do que aquela na qual o filme se inicia. Pelo menos lá, nossa dupla de amigos tinha alguma chance de fugir – um deles inclusive conseguira. Mas aqui, na fábrica e no mundo real, onde se fala em liberdade e progresso, a prisão não está em sua forma física mas se impõe como uma normalidade crucial à dignidade humana: é preciso ter para ser. René Clair não fazia uma crítica anárquica ao ato de trabalhar, e sim à sociedade de sua época.
Do mesmo ano de “A Nós a Liberdade”, o clássico soviético “Caminho da Vida” de Nikolai Ekk também reflete sobre a questão do trabalho, mas de forma diferente. O filme se inspira no trabalho do pedagogo ucraniano Anton Makarenko, que desenvolveu um método de ensino e socialização de jovens que haviam vivido na marginalidade, cuja base era a vida em comunidade, trabalho, disciplina e a participação dos internos na organização da escola. Ao final, o sentido de trabalho ali empregado deu aos jovens uma compreensão da importância da vida em comunidade. A percepção de trabalho aqui é colocada de forma contrária à do filme francês, não sendo um meio de conquistar um possível sucesso material, mas sim a contribuição coletiva na reconstrução de um país. Entende-se portanto que trabalho e sociedade são duas questões indissociáveis: a definição de trabalho é regida a partir das concepções de uma sociedade.
E já que estamos fazendo esse desvio através de outro filme, por que não o aprofundar um pouquinho mais?
A cinematografia mundial é rica em referências ao trabalho e à questão operária. Por sorte, temos uma gama de filmes das mais variadas formas e de diversos países a respeito do assunto. Qualquer amante do cinema consegue listar de cabeça em poucos segundos pelo menos cinco filmes que tratam da questão do trabalho e demonstram que René Clair, há 90 anos, sabia o que estava dizendo. Para não citar “Tempos Modernos” (voltaremos a ele depois), temos, por exemplo, “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (1971) de Elio Petri. Nele, Lulu é o funcionário ideal. Não dá ouvidos aos sindicalistas, utiliza seu tempo no trabalho de forma plenamente produtiva, vai para casa, come, assiste TV, copula (quando pode), dorme e começa tudo de novo na manhã seguinte. As características humanas desaparecem e dão espaço a traços animalescos, para não dizer selvagens, de alguém que já não precisa pensar. “A Classe Operária Vai ao Paraíso” é o desdobramento mais extremo de “A Nós a Liberdade”, a demonstração completa da possibilidade que um ser humano tem de perder o que lhe é mais básico, fiel, necessário: a sua própria humanidade. Outro filme excepcional (e mais recente) é o “Você Não Estava Aqui” (2019), do Ken Loach. Neste, temos uma crítica severa ao trabalho informal – aqui levado ao limite – que acaba por impactar toda a família de Ricky que, desempregado, se torna entregador para sobreviver. As relações humanas vão se dissolvendo diante de conceitos não muito bem explicados e não muito bem compreendidos que envolvem o sucesso, a liberdade e o instinto de sobrevivência. São filmes separados por décadas mas que souberam notar a deformação da sociedade ao longo do tempo.
No que se refere ao “A Nós a Liberdade”, vemos com um certo alívio que o dinheiro não consegue destruir a relação dos amigos Louis e Émile. Ali, em seu escritório, Louis, o entediado diretor da fábrica, só volta a sorrir quando reencontra seu velho amigo da prisão. O ritmo geralmente acelerado do filme parece diminuir quando os amigos se olham, cheios de ternura. É uma sátira sobre dinheiro mas é também uma lição de amor. A liberdade não está no dinheiro assim como não está na falta de responsabilidades. Ela está no companheirismo que um encontra no outro e nele encontram respostas para tudo.
Entre as mais variadas camadas que René Clair introduz com seu filme, a mais importante delas talvez seja o deboche final de Louis e Émile ao dinheiro e sua rejeição ao ideal de sucesso conforme estabelecido. O sucesso individual, o qual muitos tentam alcançar mas poucos realmente conseguem.
Quando “Tempos Modernos” estreou em 1936, a empresa produtora de “A Nós a Liberdade” acusou Charlie Chaplin de plágio por conta da semelhança entre algumas cenas nos dois filmes. A empresa em questão era a alemã Tobis que, à época da acusação, estava sob o controle de Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista. Tudo indica que o intuito era simplesmente causar danos à imagem de Chaplin, que negou ter assistido ao filme francês. Já René Clair manteve distância das acusações da produtora e, na verdade, ficou bastante constrangido com o caso. Afirmava que todos os cineastas estavam em dívida com Charlie Chaplin, a quem admirava, e disse que ficaria lisonjeado se ele tivesse se inspirado em um de seus filmes.
Há ainda muito a ser dito sobre “A Nós a Liberdade”. Poderíamos nos ater um pouco mais ao assédio sofrido pela personagem Jeanne por parte de um capataz da fábrica, ou ao interessante final do filme que propõe que usemos a tecnologia a nosso favor para que trabalhemos menos (podemos concordar que o que aconteceu em nossa sociedade foi o oposto?). Mas o mais importante é assistir a essa sátira magnífica, tão rica em elementos, tão leve aos olhos e ouvidos.
(*) historiadora, integrante do Centro Popular de Cultura da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (CPC-UMES) e coordenadora da Mostra Permanente de Cinema Italiano do Cine-Teatro Denoy de Oliveira.
Publicado originalmente no livreto “Clássicos Franceses”, da coleção Cinema Francês, lançada recentemente pela Versátil Home Video.