Leda Alves, Elis Regina e Dom Helder Câmara em encontro após missa em Recife – Foto: Arquivo/MV
MARCUS VINICIUS DE ANDRADE
Compositor e Maestro
No último dia 4 de novembro faleceu (ou melhor, “encantou-se”, no dizer da nossa estimada Ministra Luciana Santos) a atriz Leda Alves, também gestora e pesquisadora cultural, ex-Secretária de Cultura do Recife, sempre reverenciada como a Grande Dama do Teatro e da Cultura Popular Pernambucana, o que realmente era. Só que, para mim, ela era muito mais que isso: era minha Amiga/Irmã, com quem mantive um afetivo vínculo fraternal de 57 anos e que eu bem gostaria tivessem sido muitos mais…
O encantamento de Leda Alves – Ledinha, como eu a chamava – me deixou abaladíssimo, inclusive por ter ocorrido numa quadra traiçoeira que levou também outros amigos como Idibal Piveta (o dramaturgo César Vieira), Danilo Santos de Miranda e Cyva do Quarteto em Cy, isso para não falar daqueles que, como o nosso Théo de Barros, se encantaram já faz algum tempo e ainda continuam nos fazendo muita falta.
Sei que para mim será muito mais difícil administrar a ausência de Leda Alves, que conheci em 1966, quando aos 17 anos, iniciante nas coisas da música e da cultura, comecei a frequentar o Teatro Popular do Nordeste – TPN, no Recife. Ali se reuniam intelectuais e artistas (inclusive meus parceiros de música, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Teca Calazans, Vital Farias e outros, todos ainda sob o impacto do terror que fora o golpe militar de 64 para a região.
Convivíamos também, embora menos, com os que haviam fundado o TPN em 1960: Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho, Capiba, Gastão de Holanda e outros, todos um pouco mais idosos que nós e, em geral, mais conservadores. A exceção era Leda, que, além de atriz talentosíssima, exibia uma jovialidade que a tornaria mais próxima do nosso grupo e de mim especialmente. Com ela e com Hermilo (já seu marido) comecei a compreender melhor e a conviver mais com a Cultura Popular, principalmente a que assumia um tom progressista e até mesmo revolucionário, na esteira do que fazia, até 1964, o Movimento de Cultura Popular do Recife – MCP, criado por Germano Coelho em 1960, no início do governo Miguel Arraes, com o aval de personalidades como Paulo Freire, D. Helder Câmara e outros, entre os quais Suassuna e Hermilo. Após 64 e, principalmente, após 68, a cultura popular progressista (vamos chamá-la assim) praticamente deixou de existir enquanto movimento: refluiu, mudou de cara e voltou a ser um bibelô tradicionalista, a serviço do folclorismo cultuado pelas elites, pelo turismo predatório e pelo mercado cultural alienado e alienante.
Ainda que Ariano tivesse traçado fundamentos sólidos para a sua estética Armorial, muitos músicos e artistas subservientes ao reacionarismo cultural da ditadura aproveitaram a ocasião (anos 1970) para exercer seus talentos argentários, constituindo orquestras armoriais oficiais em várias universidades do Nordeste e sendo remunerados por verbas públicas em cada uma delas. Detalhe: era quase sempre um mesmo grupo de músicos que, executando um mesmo repertório-padrão, exibia-se sob o nome da instituição a que sazonalmente estava servindo, como se uma orquestra diferente fosse.
Por coincidência ou não, talvez em reação a tais descalabros cometidos pelo reacionarismo em nome da cultura, foi nesse momento que a literatura de Hermilo cresceu em prestígio e importância após revigorar sua essência progressista de origem, da mesma forma que Suassuna reciclou muitas das ideias que tinha, sinalizando à esquerda após inspirar-se na leitura de textos de Miguel Arraes, com quem passou a colaborar. Também Leda Alves, havia muito nutrida na doutrina social da Igreja e na Teologia da Libertação, mas iluminada principalmente pelo exemplo maior de resistência de D. Hélder Câmara, Arcebispo de Recife e Olinda desde 1964 (nomeado 18 dias antes do golpe militar), começaria aos poucos a abdicar de seu trabalho como atriz – mas jamais da atividade teatral – para retomar seus vínculos mais diretos com o Povo, principalmente através da Cultura Popular Pernambucana, da qual se tornaria uma espécie de dedicada mentora. Com isso, ela aprofundaria sua relação com os grupos e mestres da cultura popular do estado, como o Capitão Antonio Pereira do legendário Boi Misterioso de Afogados (venerado por Hermilo, que sobre ele escreveu um importante estudo), ou como Faceta, irreverente mas respeitável Velho de Pastoril em Olinda, ou o Mestre Salustiano, rabequeiro, iniciador e líder de uma dinastia de brincantes de Cavalo Marinho e Maracatu de baque solto, (ou Maracatu Rural), com o que se tornou uma defensora emérita das manifestações populares de sua terra. No mais, com sua natureza um tanto boêmia e festeira, era amiga de passistas de frevo, músicos, reis e rainhas de blocos carnavalescos, maracatuzeiros, cirandeiros e artistas populares de todas as áreas, aos quais chamava pelo nome e a quem jamais deixou de prestar reverência: “Eles são a nobreza popular”, dizia.
Com a diáspora pós-68, mesmo tendo me estabelecido no eixo Rio-SP, jamais deixei de manter contato com Leda e Hermilo, os quais viriam a atuar como consultores do produtor Marcus Pereira quando a gravadora deste ensaiava os primeiros passos – e da qual, a partir de 1977, eu me tornaria Diretor Artístico, tendo a grande responsabilidade de substituir meu conterrâneo Aluísio Falcão, que ocupara o cargo com notável eficiência. Sempre que voltava ao Recife e ao Nordeste, Leda era meu ponto de apoio, atualizando-me quanto a tudo que de importante acontecia na área da cultura e reconectando-me com velhos amigos como Antonio Nóbrega, Antonio José (Zoca) Madureira, fundadores do Quinteto Armorial e devotados discípulos de Leda Alves. Também era comum que ela convocasse para nossas mesas o pesquisador e historiador do frevo Evandro Rabello, com quem, sob os eflúvios cervejeiros, ela costumava entoar, em alto e bom som, algumas cantigas escatológicas e fesceninas, cuja autoria atribuía a Hermilo Borba Filho e – logo quem – Ariano Suassuna, podem acreditar. Noutra feita, Leda, eu e o pintor João Câmara fizemos uma viagem de automóvel de Recife a Areia (interior da Paraíba, onde nos anos 70 ocorria um prestigioso festival nacional de arte), na qual combinamos que, durante o trajeto de quatro horas, não falaríamos nada de arte, cultura, política e trivialidades que-tais; só contaríamos “causos”, baboseiras, anedotas e outras relevâncias. Imagine-se o nível da conversa que tivemos, mas o fato é que nunca quatro horas foram tão divertidas e tão rápidas.
Gianfranceso Guarnieri, Leda Alves, Marcus Pereira, Marcus Vinicius e Fernando Peixoto assistindo o Pastoril Do Velho Faceta (Olinda, 1980) – Foto: Arquivo/MV
O falecimento de Hermilo, em 1976, em nada abateu o ânimo da guerreira Leda Alves. Pelo contrário: a partir de então, engajando-se também nas lutas pela redemocratização nacional, Leda participou ativamente da campanha pela anistia e pela volta dos exilados ao país: juntamente com ela, com Marcus Pereira e outros amigos chegados, tive a honra de comparecer ao pequeno aeroporto do Encanta-Moça, na praia do Pina, para recepcionar Miguel Arraes em sua volta ao Recife e à política brasileira após anos de ausência forçada. Próxima ao MDB (depois PMDB), velha amiga e correligionária de Arraes, de Jarbas Vasconcelos e outros políticos progressistas, foi nos governos destes que Leda passou a dedicar-se quase que exclusivamente à Política Cultural Pública, tornando-se referência nacional no setor, principalmente ao exercer cargos estratégicos como a direção do Teatro de Santa Izabel do Recife, a Presidência da Companhia Editora de Pernambuco (CEPE, hoje uma das principais editoras públicas do Brasil), até chegar à Secretaria de Cultura do Recife. Nesse aspecto, a trajetória de Leda acompanhou a de Miguel Arraes, junto a quem sempre esteve presente, inclusive no reconhecimento nacional e internacional, que a levou a ser convidada, p. ex., para o seletíssimo júri do Prêmio Casa de Las Américas (Cuba) em fins dos anos 1970.
Enquanto tudo isso ocorria, Leda era festejada por artistas de todo o país, como testemunhariam, de bom grado, Eva Wilma, Ruth Escobar, Thereza Rachel, Bibi Ferreira e muitos outros, caso ainda estivessem entre nós.
Em 1978, o show Transversal do Tempo, criado e dirigido por dois queridos amigos (Aldir Blanc e Maurício Tapajós, também companheiros meus na Diretoria da AMAR, Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes) foi levado ao Recife. Eu havia recomendado a Elis Regina, a estrela do show e também minha queridíssima amiga, que procurasse Leda Alves assim que chegasse ao Recife, pois as duas teriam muito que conversar e na certa se tornariam grandes amigas. Não deu outra. Durante toda a temporada recifense (e depois dela, inclusive) as duas se tornaram inseparáveis, a ponto de Leda convidar Elis para a missa pela libertação do último preso político do Brasil (Cajá), que seria celebrado em Olinda por ninguém menos que D. Hélder Câmara. Elis ficou entusiasmada, pois conhecer D. Hélder era tudo que queria no momento, mas logo ficou em dúvida em comparecer, pois se falava que provocações direitistas poderiam ocorrer durante o evento. No dia da missa, entre as 9 h da manhã e 3 h da tarde, Elis me ligou do Recife onze vezes, tão dividida e nervosa que estava quanto à decisão a tomar, devido a antecedentes que muito a incomodavam. Temia principalmente que sua presença na missa fosse tomada como uma provocação pelo governo militar, mas que sua ausência fosse vista pelo seu público como uma capitulação à ditadura. Pouco antes do culto, falei com ela e disse-lhe mais ou menos o seguinte: “Elis (ou Baixinha, como alguns de nós também a chamávamos), faça você o que quiser. Se resolver ir à missa, vá – apenas não dê bandeira e se preserve das provocações possíveis. Agora, se não quiser ir, tudo bem também: o povo brasileiro te conhece há muito e não vai duvidar de sua coragem e coerência política.” Assim foi feito: com o apoio da Super Leda Alves, Elis assistiu à missa, emocionada, de um balcão reservado para ela. Ao final, foi o próprio D. Hélder quem a chamou à sacristia para cumprimentá-la. O segredo durou pouco: no dia seguinte, os jornais de Pernambuco (e alguns do país) publicaram em primeira página a foto de D. Hélder junto a Elis Regina e Leda Alves, foto que Elis guardou até a morte, com muito orgulho, como um troféu político. E cuja grande responsável foi a nossa Leda Alves, a Leda de Hermilo – a Leda do Brasil.
Era dessa Leda que eu gostaria de falar. A Leda que acolhia os artistas em seu gabinete ou onde quer que fosse e com eles promovia debates em defesa do Brasil, do Povo e da Cultura. Lamentavelmente, muitos dos nomes mencionados nesse texto, a começar pelo de Leda Alves, já estão todos dormindo… profundamente, como no antológico poema de Manuel Bandeira.
Mas deles ficaram obras, palavras e exemplos, como os de Leda Alves – a partir dos quais reconstruiremos o Brasil, com toda certeza.
Vamos precisar mais do quê?