Graciliano Ramos em seu 50º aniversário (Rio de Janeiro, 27 de outubro de 1942), homenageado pelos maiores da literatura brasileira. Entre outros, sentados na primeira fila, Drummond (segundo, da esquerda para a direita) e Bandeira (segundo, da direita para a esquerda); em pé na segunda fila, José Lins do Rego; na primeira fila em pé, Jorge Amado.
CARLOS LOPES
A língua literária nacional foi estabelecida pelos nossos romancistas da década de 30, aqueles que superaram a desordem, elitismo e anarquia modernistas. A maioria – José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queirós, Jorge Amado, e, principalmente, Graciliano Ramos – era composta de nordestinos. Mas havia também gaúchos (Érico Veríssimo e Dyonélio Machado), pelo menos um paulista (Amando Fontes, que, apesar da trajetória sergipana, veio à luz em Santos), além de cariocas (Marques Rebelo, José Geraldo Vieira) e mineiros (Lúcio Cardoso, Cyro dos Anjos, João Alphonsus).
É fora de dúvida que tivemos uma língua literária antes da década de 30 do século passado. O próprio fundador do romance brasileiro, José de Alencar, foi o primeiro, no prefácio de Sonhos d’Ouro (1872), a observar (e sustentar) a tendência nossa de seguir a independência, em relação a Portugal, também na língua literária.
Esta tendência é ainda mais pronunciada em Machado de Assis – apesar de todas as afirmações de que ele regrediu, quanto à influência lusitana, em relação a Alencar (dizem alguns que devido à esposa portuguesa, Dª Carolina Augusta).
Porém, existe algo de francês na língua literária de Alencar, assim como existe algo de inglês na língua literária de Machado de Assis. Sem contar o que existe de lusitano na língua literária dos dois.
Não é isso, entretanto, que faz com que eles sejam degraus na construção de uma língua literária nacional, mas sem atingir seu estágio superior.
A questão pode ser colocada em termos simples: nem Alencar, nem Machado, nem Aluísio ou Pompeia, muito menos Euclides, ou mesmo Lima Barreto, nas suas épocas, escreviam em uma língua representativa do conjunto da população.
Não estamos nos referindo à linguagem oral. Como indicou o professor Clóvis Monteiro em uma página da sua Nova Antologia Brasileira (1963), a distinção entre língua oral e língua literária existe em todos os países do mundo.
Aqui se trata de outra coisa: de uma língua literária que seja representativa do povo, isto é, do conjunto da população.
Alguém poderia arguir que, hoje, o português brasileiro de Alencar e Machado são representativos do povo. É verdade, mas isso foi conquistado após, na década de 30, atingirmos o estabelecimento de uma língua literária nacional, pelos escritores daquela época. Em seu próprio tempo, Alencar e Machado eram escritores restritos a uma faixa pequena, mais ou menos culta, da população.
O que é completamente diferente dos escritores que mencionamos no início deste artigo, inclusive Graciliano Ramos. Nessa época formou-se, pela primeira vez, um público leitor que abarcava a população brasileira. Lembro-me, por exemplo, de meu avô materno – tecelão que foi analfabeto até depois dos 20 anos – lendo Memórias do Cárcere (1953). A língua literária de Graciliano abarcava os homens do povo brasileiro.
Assim é que, ao prefaciar Viagem (1954), livro póstumo de Graciliano, escreveu Jorge Amado:
“Um dos fenômenos mais curiosos do avanço cultural do Brasil, revelador de nosso rápido amadurecimento, é o fato de Graciliano Ramos, escritor considerado difícil por volta de 1940, situar-se hoje entre os romancistas de maior popularidade do país. Suas edições sucedem-se, alguns dos seus livros colocam-se entre os best-sellers permanentes nas livrarias do norte ao sul, das grandes e das pequenas cidades. Não há dúvida: apesar das marchas e contramarchas, dos recuos e das tentativas do entreguismo de fazer o Brasil retornar a uma economia agro-pastoril de nação exportadora de matérias-primas e importadora de luxo e miséria, apesar do golpe de estado reacionário de 1954, apesar de tudo isso o Brasil cresce, faz-se poderoso, econômica e culturalmente.”
E, logo em seguida:
“Graciliano Ramos, romancista de Alagoas, duro sertanejo de indômita vontade, têmpera de aço, foi um dos escritores que mais concorreram para esse avanço brasileiro. Foi um dos construtores de sua época, criador de uma grande literatura e da consciência nacional.”
Entretanto, isso foi alcançado sem concessões:
“Graciliano foi, entre os escritores do ‘movimento de 30’, o que mais se aproximou da perfeição. Ante a justeza, a correção brasileira da língua portuguesa por ele escrita, nós, os outros ficcionistas do Nordeste, somos uns bárbaros. Esse sertanejo de Palmeira dos Índios nasceu clássico, um clássico brasileiro.”
O motivo desse feito extraordinário, diz Amado, está na identificação com o povo, através da literatura:
“Pessimista em relação aos políticos e à vida literária, foi extraordinária sua confiança no povo, sua fidelidade à literatura.”
Daí, o tocante momento de sua despedida:
“Recordo o velório de seu corpo na Câmara Municipal do Rio de Janeiro: escritores choravam pelos cantos, choravam homens rudes, operários, gente humilde do povo. Ele não era um líder nem mesmo um escritor de fácil popularidade. Mas sua grandeza era compreendida por todos, todos sentiam que havíamos perdido um dos nossos maiores artistas, um homem excepcional.”
Esse texto de Jorge Amado é também um dos melhores na análise da relação de Graciliano – e do “movimento de 30” – com o modernismo, questão que examinamos em alguns artigos anteriores (v. HP 07/10/2023, Jorge Amado: o povo como protagonista do romance brasileiro e HP 31/05/2022, A Semana de 1922, a literatura nacional e a revolução brasileira).
Sucintamente:
“O Modernismo processara-se na cúpula de salões literários, em São Paulo e no Rio, e de revistas de pequena circulação. (…) O ‘movimento de 30’ processou-se, por assim dizer, no meio da rua, entre o povo. Essa a sua diferença essencial para o Modernismo.” (cf. Jorge Amado, Mestre Graça, in Graciliano Ramos, Viagem: Tcheco-Eslováquia – URSS, 16ª edição, Record, 1986, pp. 7-10).
Essa é, também, por consequência, a diferença básica entre Graciliano Ramos, seus colegas de movimento, e os expoentes do modernismo, Oswald e Mário de Andrade. O que explica a popularidade de uns e a pouca difusão da obra dos últimos entre o povo.
O surgimento de Graciliano para a literatura é, em geral, contado como se fosse um resumo: Augusto Frederico Schmidt, poeta e editor, lera dois relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios, Estado de Alagoas, e, impressionado com esses relatórios, mandara alguém perguntar se o seu autor – Graciliano Ramos – não tinha um romance para ser publicado. Foi assim que Caetés (1933) lhe chegara às mãos (os relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios foram, depois, em 1962, publicados na coletânea Viventes das Alagoas).
Augusto Frederico Schmidt era, nessa época, dono da Livraria Schmidt Editora, que publicou os primeiros livros de alguns autores importantes (Gilberto Freyre, Rachel de Queirós, Jorge Amado, Vinícius de Moraes), mas também os integralistas e a reação católica.
Para quem se lembra de Schmidt no início da década de 60, proprietário do supermercado Disco e defensor do capital norte-americano no Brasil – depois de seu flerte com o fascismo em décadas passadas -, essa história parece quase incrível.
Somente muito depois Jorge Amado – que satirizara Augusto Frederico Schmidt como o César Guilherme Shopel de Subterrâneos da Liberdade (1954) – contou que o editor, na verdade, engavetara Caetés, e somente a duras penas o publicou.
Deste atraso na publicação de sua primeira obra, redundou que o livro seguinte de Graciliano – S. Bernardo (1934) – aparecesse pouco depois de Caetés, e, no entanto, parecesse tão diferente. Este último estava pronto desde 1926, enquanto o segundo somente foi terminado em 1932.
Hoje, depois das análises de Álvaro Lins e Antonio Candido, Caetés foi relegado a romance medíocre, escrito sob a influência sufocante de Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, portanto, um ponto fora da curva para um autor que seria um dos fundadores da língua literária brasileira.
Apesar disso, o romance é, na média, superior ao que se publicava no Brasil da época. É verdade que sua aderência às pequenas intrigas de cidade do interior – em especial ao caso adulterino de João Valério e Luísa – torna-se maçante para a maioria dos leitores, devido à mediocridade dos personagens.
Mas existe um elemento que permaneceria constante nos romances (ou novelas) posteriores de Graciliano: a propriedade domina o ser humano. Assim, depois do desaparecimento de Adrião, o marido de Luísa, seu amante rompe o relacionamento, mas não abandona a sociedade da loja comercial.
A propriedade, portanto, é mais importante que o suposto amor de João Valério por Luísa.
É interessante que Graciliano não tinha em alta conta o grande romance brasileiro sobre um amor adulterino, Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), de Machado de Assis. Como relatou, em 1949, Otto Maria Carpeaux, o escritor alagoano lhe disse:
“Machado de Assis é grande escritor (…), apenas não é romancista. Do ponto de vista da técnica novelística, todos os seus romances são deficientes. São misturas de crônicas, ensaios, aforismos, meditações, contos, sobretudo de contos. O Brás Cubas não é outra coisa senão uma narração incoerente, com uns contos interpolados. Magníficos contos, aliás, pois Machado é grande nesse gênero, maior entre os brasileiros. Como contista, o autor do ‘Trio em lá menor’ e da ‘Causa secreta’ seria grande em qualquer língua, você não acha?” (cf. Otto Maria Carpeaux em A Manhã, 1949, rep. em Graciliano Ramos, Conversas, org. Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Record, 2014).
No ano seguinte a Caetés, sairia S. Bernardo.
Neste romance (alguns, como Álvaro Lins, o classificaram como “novela”) a propriedade é a essência da vida – se é que se pode chamar de vida – do personagem principal e narrador, Paulo Honório. Sua própria queda, como homem, acontece quando não pode se apossar – ou seja, tornar propriedade – o único ser que ama (ou que o ama): a mulher, Madalena. Esta prefere a morte, por suicídio, do que ser uma propriedade.
O livro é espantoso, pois supera inteiramente a literatura da época – e a língua é inteiramente brasileira. Aliás, como escreveu o próprio Graciliano, em carta à esposa, datada de Palmeira dos Índios, 15 de setembro de 1932:
“Vai sair uma obra-prima em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados. O pior é que de cada vez que leio aquilo corto um pedaço. Suponho que acabarei cortando tudo” (v. Graciliano Ramos, Cartas, 6ª edição, Record, 1986, p. 125).
Em outra carta, também para Heloísa, de quatro de outubro, Graciliano sublinha mais uma vez a questão da língua literária nacional em S. Bernardo:
“… Encontrei muitas coisas boas da língua do Nordeste, que nunca foram publicadas, e meti tudo no livro. Julgo que produzirão bom efeito. O pior é que há umas frases cabeludíssimas que não podem ser lidas por meninas educadas em convento. Cada palavrão do tamanho dum bonde. Desconfio que o padre Macedo vai falar mal de mim, na igreja, se o livro for publicado. É um caso sério. Faz receio. O que me tranquiliza é ele nunca ter lido nada. Quando você saiu daqui havia no romance algumas passagens meio acanalhadas. Agora que não há aqui em casa nenhuma senhora para levar-me ao bom caminho, imagine o que não tenho arrumado na prosa de seu Paulo Honório” (v. idem, p. 128).
Em 1º de novembro de 1932, também de Palmeira dos Índios, Graciliano escreve à mulher que terminou, finalmente, o livro:
“O S. Bernardo está pronto, mas foi escrito quase todo em português, como você viu. Agora está sendo traduzido para brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. Além do que eu conhecia, andei a procurar muitas locuções que vou passando para o papel. O velho Sebastião, Otávio, Chico e José Leite me servem de dicionários. O resultado é que a coisa tem períodos absolutamente incompreensíveis para a gente letrada do asfalto e dos cafés. Sendo publicada, servirá muito para a formação, ou antes para a fixação, da língua nacional. Quem sabe se daqui a trezentos anos eu não serei um clássico? Os idiotas que estudarem gramática lerão S. Bernardo, cochilando, e procurarão nos monólogos de seu Paulo Honório exemplos de boa linguagem” (v. idem, pp. 134-135).
A preocupação de Graciliano com a língua nacional (sua fixação ou formação) transparece em S. Bernardo. Ele não precisou de trezentos anos para ser reconhecido como um clássico. Assim aconteceu logo que seu segundo livro foi publicado.
Alguns críticos importantes, tendo à frente Lúcia Miguel Pereira, levantaram que o principal defeito de S. Bernardo é a refinada narração, realizada por um personagem rústico, bruto, ignorante. Não seria verossímil que esse protagonista fosse dotado de vida subjetiva tão complexa e da capacidade de relatar a sua história com tanta arte.
Porém, S. Bernardo é um livro de ficção. E até mesmo em diários de pessoas simples podemos encontrar razoável sofisticação. Um exemplo evidente é Quarto de despejo: Diário de uma favelada (1960), de Carolina Maria de Jesus.
É lastimável que Álvaro Lins não tenha conseguido realizar sua intenção de examinar a obra de Graciliano do ponto de vista do marxismo (em nota ao terceiro ensaio que dedicou à obra do escritor alagoano, explica Lins: “Este Autor projetara – e nisto estava interessado o próprio romancista – realizar um estudo de interpretação da obra de Graciliano Ramos sob o ponto de vista do marxismo, aproveitando a circunstância de ter-se inscrito ele, dois anos antes, como membro do Partido Comunista. Todavia, isto se tornou impossível, em realidade ética, porque no momento em que apareceram os seus livros em conjunto, e quando, consequentemente, preparei este ensaio – julho de 1947 – os comunistas brasileiros estavam sendo objeto de uma perseguição policial zoologicamente feroz e brutal por parte do governo do marechal Dutra. Um governo que deve ficar caracterizado pelos intelectuais – e para vergonha e anátema de quem nele ocupou cargos e posições – como o mais violento, o mais grosseiro e o mais desonesto de todos os governos republicanos”).
Assim, a questão da propriedade, decisiva na obra de Graciliano Ramos, não foi abordada com a ênfase necessária na copiosa bibliografia sobre o autor.
Pois, o livro que seguiu a S. Bernardo, é mais uma metamorfose, em matéria romanesca e psicológica, da questão da propriedade.
O Luís da Silva de Angústia (1936) é um rebento de relações de propriedade decadentes, assim como Julião Tavares (e o Paulo Honório do livro anterior) é uma expressão das relações de propriedade em ascensão.
O romance é a história de um crime, um delírio circular que começa – o livro – quando termina. Mas nós não temos certeza de que o crime se realizou ou se Luís da Silva, esse fracassado, o alucinou.
Isso não tem importância, assim como não há importância se a traição de Capitu, em Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis, é real ou passa-se na cabeça de Bentinho.
Para todos os efeitos, o enforcamento de Julião Tavares aconteceu, porque ele aconteceu para Luís da Silva. O estranho é que Marina, o móvel do crime, parece não ter existência real, não parece ser uma pessoa. É como se fosse uma… propriedade, uma coisa, que passa de Luís da Silva para Julião Tavares e outra vez para Luís da Silva, e sempre em função das relações de propriedade, minguantes no caso de um, crescentes no caso de outro.
A psicologia dos personagens – Paulo Honório, Luís da Silva, e, inclusive, João Valério – existe, mas sempre expressando uma base material.
Angústia é considerado por muitos a obra-prima de Graciliano. O fato de ser publicado quando o autor encontrava-se na cadeia, fez do livro quase uma lenda. No entanto, a julgar por um comentário em Memórias do Cárcere (1953), é pouco provável que esse fosse o julgamento de Graciliano:
“Alguns capítulos não me pareciam muito ruins, e isto fazia que os defeitos medonhos avultassem. O meu Luís da Silva era um falastrão, vivia a badalar à toa reminiscências da infância, vendo cordas em toda a parte. Aquele assassinato, realizado em vinte e sete dias de esforço, com razoável gasto de café e aguardente, dava-me impressão de falsidade. Realmente eu era um assassino bem chinfrim. O delírio final se atamancara numa noite, e fervilhava de redundâncias. Enfim não era impossível canalizar esses derramamentos. O diabo era que no livro abundavam desconexões, talvez irremediáveis” (v. Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere, vol. I, 21ª ed., Record, 1986, p. 42).
Em carta a Antonio Candido, datada de 12 de novembro de 1945, Graciliano foi ainda mais rigoroso:
“… Sempre achei absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes. (…)
“Por que é que Angústia saiu ruim? Diversas pessoas procuraram razões, que não me satisfizeram. Olívio Montenegro usou frases ingênuas e pedantes, misturando ética e estética. João Gaspar Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta premissa arrasou-me. Veja só. Nada há mais falso que um silogismo. Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico. Mas isso diz pouco, não é verdade? Se eu constituísse uma exceção à regra de João Gaspar Simões e contentasse Olívio Montenegro e Álvaro Lins, Angústia não deixaria de ser um mau livro, apesar de haver nele páginas legíveis.
“Por que é mau? Devemos afastar a ideia de o terem prejudicado as reminiscências pessoais, que não prejudicaram Infância, como v. afirma. Pego-me a esta razão, velha e clara: Angústia é um livro mal escrito. Foi isto que o desgraçou. Ao reeditá-lo, fiz uma leitura atenta e percebi os defeitos horríveis: muita repetição desnecessária, um divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilíbrio, excessiva gordura enfim, as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu terceiro artigo. É preciso dizermos isto e até exagerarmos as falhas: de outro modo o nosso trabalho seria inútil.
(…) “Naturalmente seria indispensável recompor tudo, suprimir excrescências, cortar pelo menos a quarta parte da narrativa. A cadeia impediu-me essa operação. A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à datilógrafa e no mesmo dia fui preso. Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia me houvesse abafado esse material perigoso. Isto não aconteceu – e o romance foi publicado em agosto. Achava-me então na sala da capela. Não se conferiu a cópia com o original. Imagine. E a revisão preencheu as lacunas metendo horrores na história. Só muito mais tarde os vi. Um assunto bom sacrificado, foi o que me pareceu.
“Esta explicação tem apenas o fim de exibir-lhe o prazer que me causou o seu juízo. Quando um modernista retardatário e pouco exigente me vem seringar amabilidades a Angústia, digo sempre: – ‘Nada impede que seja um livro pessimamente escrito. Seria preciso fazê-lo de novo’.” (cf. Antonio Candido, Ficção e Confissão – Ensaios sobre Graciliano Ramos, 3ª edição, Ouro sobre Azul, 2006, pp. 10-11).
Apesar disso – apesar do julgamento do autor – o romance foi um sucesso impressionante, ainda que de crítica mais que de público. Não sabemos qual foi a influência desse sucesso na liberação de Graciliano da prisão, mas supõe-se que tenha existido (sabe-se que José Lins do Rego, amigo de Graciliano, falou com o então presidente Getúlio Vargas sobre o caso, após o que ele foi liberado. Sobre os motivos da prisão, Álvaro Lins lembrou, em um dos ensaios reunidos sob o título geral Valores e Misérias das Vidas Secas: “Viu-se preso e violentado Graciliano Ramos como objeto de especial perseguição do general Newton Cavalcanti, uma espécie de guarda de campo de concentração nazi-fascista, em quem, todavia, apuseram no Brasil, como em alguns outros de igual feitio e mentalidade no Exército, Marinha e Aeronáutica, os bordados das mais altas patentes militares”).
Não repassaremos, aqui, os argumentos dos principais ensaios sobre a obra de Graciliano – os de Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux e Antonio Candido.
Faremos apenas algumas anotações sobre o último romance (ou “novela”) do autor, Vidas Secas (1938).
Ao contrário dos protagonistas de Caetés, S. Bernardo e Angústia, Fabiano e sua família (incluída a cachorra Baleia) são personagens simpáticos, que resistem à seca, à desigualdade e à injustiça, ainda que ao seu modo, sobretudo inconsciente.
Eles não têm qualquer propriedade – e essa negatividade os define como seres humanos. Têm de viver na propriedade alheia e nem uma cama decente Sinha Vitória tem para dormir (muitos anos depois, no início do primeiro governo Arraes, em Pernambuco, os camponeses ainda tinham, somente, para dormir, a mesma cama de varas referida várias vezes por Graciliano em Vidas Secas).
Ao contrário dos livros anteriores, este não é escrito na primeira pessoa. E seus capítulos constituem contos separados, aliás, magistrais. Juntos, entretanto, formam um romance ou uma novela.
Apesar da terrível tragédia que afeta os personagens, é um livro otimista – o ser humano não está submetido à propriedade, apesar de atingido violentamente por ela. Daí o seu final, quando a seca os persegue outra vez e a família de Fabiano é obrigada a se mudar, também outra vez:
“Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando. Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de terra. Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitória esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos agarradas à boca do saco e à coronha da espingarda de pederneira.
“Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam o caminho. As palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de Sinha Vitória, as palavras que Sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.”
Não é difícil perceber, pela obra de Graciliano, o que o conduziu ao comunismo. A propriedade torna os protagonistas dos três primeiros livros repugnantes – ou, quando não, infelizes e desgraçados. A falta de propriedade – essa característica do povo em geral no atual estágio de nossa História – torna Fabiano e sua família simpáticos. Para estes, não existe derrota. Mesmo quando a seca chega outra vez, existe o sul do país, para onde eles, com esperança, se deslocam.
Essa é a diferença de Vidas Secas para as obras anteriores de Graciliano: nele, existe esperança.
Seria um grande final para uma obra literária, mas restam os livros de memórias. Alguns apontaram que, neles, está a chave da obra romanesca de Graciliano. Em especial no livro Infância (1945).
“Creio que este é o mais bem escrito de todos os seus livros. Percebe-se aqui o apuro do trabalho de composição e estilo, o seguro artesanato literário. A secura, a frieza dessas impressões de infância encontra a devida correspondência no seu estilo sóbrio, ascético, livre de adornos. A prosa do Sr. Graciliano Ramos é moderna, no seu aspecto desnudado, no vocabulário, no gosto das palavras e das construções sintáticas, e é clássica pela correção, pelo tom como que hierático das frases. O que a valoriza propriamente não é a beleza, no sentido hedonístico da palavra, mas a sua precisão, a sua capacidade de transmitir sensações e impressões com um mínimo de metáforas e imagens, quase só com o jogo e o atrito de vocábulos, principalmente de adjetivos” (Álvaro Lins, Valores e Misérias das Vidas Secas, republicado em Os Mortos de Sobrecasaca, Civilização Brasileira, 1963, p. 157).
Este ensaio foi publicado pela primeira vez em 1945, quando Graciliano já completara a sua obra romanesca. No entanto, o crítico, dos mais argutos da sua época, afirma, e com razão, “que este é o mais bem escrito de todos os seus livros”.
E sobre o seu conteúdo:
“No mundo infantil do Sr. Graciliano Ramos a injustiça se erguia no horror dessa divisão: de um lado, crianças submissas e maltratadas, do outro lado, adultos, cruéis e despóticos. Pais, mães, mestres, todos os adultos pareciam dotados da missão particular de oprimir as crianças. Um mundo intolerável de castigos, privações e vergonhas. Uma ou outra exceção, que atravessa de leve essas recordações, não chega a partir a unidade na fisionomia de infortúnio e desolação. Toma quase que o aspecto de uma figura do outro mundo a professora Maria, com a voz suave, com seus impulsos de ternura, que por isso mesmo tanto surpreendeu a princípio o menino Graciliano Ramos, já acostumado, em casa, com o tratamento de ‘bolos, chicotadas, cocorotes, puxões de orelhas’. A professora Maria, porém, é um episódio que logo desaparece; a realidade que fica é a da professora Maria do O, quase sádica no tratamento impiedoso dado à menina Adelaide. E o que foi o espetáculo da infância desgraçada, para a visão do Sr. Graciliano Ramos, vê-se no capítulo comovente ‘A Criança Infeliz’, um dos últimos do livro” (idem, p. 155).
Ainda aqui, a questão da propriedade – a relação dos adultos com as crianças, contaminadas inevitavelmente pelo sentimento de propriedade de uns em relação às outras – está no fundo desse ambiente brutal.
Em outro texto, citado acima, frisamos o antimodernismo de Graciliano Ramos, também exposto em O Antimodernista: Graciliano Ramos e 1922 (org. Thiago Mio Salla e Ieda Lebensztayn, Record, 2022). É forçoso observar que, além dos problemas de estilo, os modernistas, socialmente, tinham uma relação diferente com a propriedade.
Resta lembrar que, mesmo antes de publicar o seu primeiro livro, Graciliano já era considerado um dos homens de maior cultura literária do sertão de Alagoas. José Lins do Rego, que viajou a Palmeira dos Índios para, então, conhecê-lo, relatou em 1943:
“O homem que sabia mitologia também entendia de Balzac, de Zola, de Flaubert, de literatura, como se vivesse disto. Soube que era comerciante, que tinha família grande, que era ateu, que estivera no Rio, que fizera sonetos, que sabia inglês, francês, que falava italiano” (cf. José Lins do Rego, O mestre Graciliano, in Poesia e Vida, 1945, rep. O Cravo de Mozart é Eterno, José Olympio, 2004, p. 35).
Isso também aparece nas cartas de Graciliano anteriores ao primeiro livro, principalmente naquelas dirigidas a Joaquim Pinto da Mota Lima Filho, irmão do futuro jornalista e dirigente comunista Pedro Mota Lima, falecido, em 1966, na Tcheco-Eslováquia, em desastre aéreo.
Ao contrário da lenda, que sempre o apresenta como um homem amargo, não era destituído de humor. Apesar de considerá-lo um pessimista, na lembrança de Otto Maria Carpeaux:
“É grande e saboroso seu anedotário a respeito. Cumprimentei-o certa vez: ‘Bom dia, Graça’. E ele me respondeu: ‘Você acha?’. Implacável para consigo mesmo, tem o direito de o ser também quanto aos outros. Quando lhe elogiaram a figura humana de certo escritor medíocre, dizendo: ‘Sua vida foi superior à sua obra’, Graciliano respondeu secamente: ‘Qualquer vida teria sido superior à sua obra’. Mas há casos em que a obra não se pode separar da vida. Em Graciliano Ramos, por exemplo, não sabemos o que é superior: a obra do grande escritor ou a vida do homem admiravelmente decente. É o escritor, o homem, o companheiro e o amigo que saudamos comovidos, no dia do seu sexagésimo aniversário” (cf. Otto Maria Carpeaux, Os sessenta anos de Graciliano Ramos, Correio da Manhã, 26 de outubro de 1952, in Ieda Lebensztayn, Graciliano Ramos, por Otto Maria Carpeaux: 120 anos, homenagem em dobro, Estudos Avançados 26 (76), 2012).
No entanto, ele mesmo não tinha um julgamento hiperbólico, nem mesmo elogioso, sobre sua obra. Em Moscou, no ano de 1952, perguntaram-lhe qual livro seu poderia ser traduzido em russo. Não conseguiu responder:
“Tinha-me vindo o pensamento de que os meus romances nenhum interesse despertariam àqueles homens: são narrativas de um mundo morto, as minhas personagens comportam-se como duendes. Na sociedade nova ali patente, alegre, de confiança ilimitada em si mesma, lembrava-me da minha gente fusca, triste, e achava-me um anacronismo. Essa ideia, que iria assaltar-me com frequência, não me dava tristeza. Necessário conformar-me: não me havia sido possível trabalhar de maneira diferente: vivendo em sepulturas, ocupara-me em relatar cadáveres” (cf. Graciliano Ramos, Viagem: Tcheco-Eslováquia – URSS, 16ª edição, Record, 1986, p. 57).
Sobre Graciliano e seus livros, debruçaram-se grandes ensaístas e críticos da nossa literatura. Podemos dizer que os maiores, entre eles. Porém, a melhor síntese do significado desta obra coube a um historiador literário:
“A mais alta figura da prosa nordestina seria Graciliano Ramos. Nele, realmente, a língua, distanciada dos cacoetes escandalosos do Modernismo, como dos rigores formais da simples imitação de um classicismo superado, serviria de extraordinário instrumento para elaboração de uma obra de profundo conteúdo humano e social, em que os conflitos individuais e coletivos teriam exata representação. Escritor claro, harmonioso e simples, caracterizado por uma extrema parcimônia verbal, Graciliano Ramos ascendeu a uma mestria raramente encontrada entre nós, deixando uma obra em que se retrata com fidelidade exemplar a vida brasileira do nosso tempo, com os seus dramas e os seus desencontros. Minucioso e exato no traço, reconstituindo a paisagem física muito menos que a paisagem humana, mas mostrando na segunda a influência da primeira, como nos quadros da seca, Graciliano Ramos foi o narrador da decadência de uma classe, no meio nordestino, conseguindo superar, pela sua vigorosa arte literária, tudo o que o regionalismo tem de meramente superficial e externo e o documentário de elementar e limitado, ao mesmo tempo que refletiu, de maneira fiel, o resultado nas pessoas de todo o contraste e de todo o conflito representado pela vida brasileira e de seu tempo. Realizando em altos padrões literários a transposição da realidade para a ficção, Graciliano Ramos não só se destacou como figura inexcedida em sua época, como denunciou o amadurecimento da literatura brasileira, o momento a que ela atingira como expressão nacional de um povo”. (Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, 7ª edição, Difel, 1982, pp. 558-559).
Se substituirmos, na primeira frase, “prosa nordestina” por “prosa nacional” ou “literatura brasileira” – pelo menos em sua época – teremos um retrato perfeito de Graciliano situado em nossa História.
Acima, apontamos as relações de propriedade como a base da obra ficcional de Graciliano Ramos. Ele próprio, ao insistir que os escritores deveriam estudar economia política, expôs a importância que via nessa base, sobre a qual erguia a vida subjetiva, a psicologia, de seus personagens (v. Graciliano Ramos, O fator econômico no romance brasileiro, in Linhas Tortas, 13ª ed., Record, 1986, pp. 253-259).
Mas essa é, exatamente, a questão em que se debate o Brasil, cujas opressoras relações de propriedade internas são condicionadas pela espoliação das relações de propriedade externas, vale dizer, pela subordinação ao imperialismo e suas metrópoles.
O que torna Graciliano, talvez, o mais brasileiro dos nossos escritores.