Franz Kafka, que morreu a 3 de junho de 1924, portanto, há 100 anos, foi, sem dúvida, um dos maiores escritores do século XX. Mais do que isso, ele foi um dos três prosadores (os outros foram Marcel Proust e James Joyce) que levaram a literatura burguesa aos seus limites – e mesmo os ultrapassaram.
Em um mundo conturbado, em transição, onde a Revolução Russa estabeleceu outra corrente literária – uma corrente literária não burguesa, o realismo socialista – Kafka condensou a representação do homem sob o capitalismo monopolista. Esse é o conteúdo, por exemplo, de O Processo, A Metamorfose, O Castelo e Amerika, assim como de vários contos (O veredicto; Na colônia penal; Um médico rural; Um artista da fome; A grande muralha da China; Josefina, a cantora).
Naturalmente, são possíveis outras interpretações da obra de Kafka – e essas outras interpretações existem.
Aqui, nos atemos à questão da alienação na sociedade de classes, levada ao seu extremo. Nesse sentido, a própria vida de Kafka é a tentativa de sobreviver numa Europa afundada na submissão imperialista.
Nascido no decadente Império Austro-Húngaro, do qual o seu pequeno país, a Tchecoslováquia, foi um estilhaço que se separou após a Primeira Guerra Mundial, Kafka, no entanto, jamais escreveu em tcheco (com exceção das cartas a Milena Jesenská – e, mesmo assim, nem todas), apesar de dominar a língua.
Mas ele era um escritor de língua alemã. Na Tchecoslováquia da época, havia um alentado círculo de escritores que elaboraram sua obra em alemão.
Kafka foi o principal deles.
Quase todos os seus escritos, com exceção de alguns contos, foram publicados após sua morte pelo amigo e testamenteiro Max Brod, outro escritor tcheco de língua alemã. A história é mais conhecida do que as obras de Kafka: desrespeitando o desejo do autor, que determinara em seu testamento que seus textos inéditos fossem queimados, Brod os publicou. Ainda bem. Assim, a Humanidade não perdeu um de seus pontos culminantes culturais.
O fato da palavra “kafkiano” ter se tornado um adjetivo comum em quase todas as línguas, como sinônimo de “absurdo”, é prova suficiente da importância de Kafka como escritor, até porque a maioria das pessoas que usam esse adjetivo jamais leram suas obras.
Mas não é verdade que seus escritos sejam inclinados ao absurdo ou à falta de lógica. Quando escreveu a Carta ao Pai, dirigida a Herman Kafka, que reprovara o noivado do filho com Julie Wohryzek (por uma boa razão: o sionismo desta empregada ignorante), não é o absurdo que transparece, mas a análise implacável de um complexo de Édipo que não diz seu nome (Kafka, parece, sempre desconheceu Freud, outro escritor de língua alemã nascido no Império Austro-Húngaro).
Diz, então, em 1919, Franz ao seu pai, Herman:
“… justamente como pai tu foste demasiado forte para mim, sobretudo porque meus irmãos morreram ainda pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar por inteiro e sozinho o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais.
“Compara-nos um com o outro: eu, para expressá-lo de maneira bem atrevida, um Löwy com um certo fundo kafkiano, mas que por certo não é acionado pela vontade de viver, de fazer negócios e de conquistar kafkianas, mas por um aguilhão löwyano, que atua de maneira mais secreta, mais tímida, em outra direção e muitas vezes inclusive cessa de todo. Tu, ao contrário, um verdadeiro Kafka na força, na saúde, no apetite, na potência da voz, no dom de falar, na auto-satisfação, na superioridade diante do mundo, na perseverança, na presença de espírito, no conhecimento dos homens, em certa generosidade, naturalmente também com todos os defeitos e fraquezas que fazem parte dessas qualidades, nas quais teu temperamento e por vezes tua cólera te precipitam. Talvez não sejas um Kafka completo em tua visão geral de mundo, pelo menos na medida em que posso comparar-te a tio Philipp, a Ludwig, a Heinrich. Isso é curioso, mas aqui também não vejo com muita clareza. É que eles eram mais alegres, mais dispostos, mais desenvoltos, mais levianos, menos rigorosos do que tu. (Nisso, aliás, herdei muito de ti e administrei a herança bem demais, sem no entanto ter no meu ser os contrapesos necessários conforme tu os tens.) Por outro lado, tu também atravessaste outros tempos no que diz respeito a isso, foste talvez mais alegre, antes de os teus filhos, sobretudo eu, te decepcionarem e oprimirem em casa (pois quando chegavam estranhos, eras diferente) e talvez agora voltaste a ficar mais alegre, uma vez que os netos e o genro te devolveram um pouco daquele calor que os filhos não puderam te dar, a não ser Valli, talvez.
“Seja como for, éramos tão diferentes e nessa diferença tão perigosos um para o outro, que se alguém por acaso quisesse calcular por antecipação como eu, o filho que se desenvolvia devagar, e tu, o homem feito, se comportariam um em relação ao outro, poderia supor que tu simplesmente me esmagarias sob os pés, a ponto de não sobrar nada de mim.”
Esta carta jamais foi entregue ao pai – e somente foi publicada depois da morte de Franz. Mas é o mesmo esmagamento que aparece em A Metamorfose e em O Processo, porém transformado através da ficção e extrapolado socialmente.
Do ponto de vista político, apesar do relacionamento com Julie Wohryzek (com quem, por sinal, jamais casou), Kafka tendia ao socialismo e mesmo ao anarquismo pacifista de Piotr Kropotkin. É conhecida a sua desavença com o sionista Hugh Bergmann. Mesmo sobre um amigo como Max Brod, que se estabeleceu em Israel, não se pode dizer que fosse sionista. Apenas, Brod encontrou na Palestina – e depois em Israel – um refúgio para a perseguição nazista.
Hoje, existe uma tentativa de caracterizar a obra de Kafka como tipicamente judaica. O próprio autor é um desmentido dessa teoria – e, aliás, o que existe em Josef K. (O Processo) ou Gregor Samsa (A Metamorfose) de “tipicamente” judaicos?
Exceto se pudéssemos caracterizar o judeu como o ser humano “típico” da época do capitalismo monopolista, esse suposto caráter da obra de Kafka seria impossível.
Pelo contrário, o pensador mexicano Adolfo Sánchez Vázquez está, em nossa opinião, inteiramente certo quando, em Las Ideas Estéticas de Marx, fala, sobre Kafka, em “la trampa de ceder su obra a la burguesía”.
Para o leitor interessado nas abordagens marxistas da obra de Kafka, recomendamos, também, o ensaio de Walter Benjamin, Franz Kafka, a propósito do décimo aniversário de sua morte (1934).
De certa forma, esses e outros trabalhos recuperam o estrago realizado pelo húngaro György Lukács, incapaz de perceber o realismo na obra de Kafka.
Não deixa de ser interessante que Lukács, ao mesmo tempo que recusa Kafka, Proust e Joyce por suposta falta de realismo, exalta Thomas Mann como o suprassumo da literatura realista do século XX.
O interessante é que existe um claro-escuro em Kafka que lembra Mann, e, de forma geral, o expressionismo alemão. Não estamos, aqui, incluindo Kafka no expressionismo. Apenas estabelecendo fronteiras que unem mais do que separam.
O leitor, evidentemente, é livre para escolher a interpretação que mais lhe agradar – ou mais corresponder a seu horizonte ideológico – sobre Kafka.
Mas não é possível ignorá-lo.
Diagnosticado desde 1917 com tuberculose na laringe, Franz Kafka morreu em 1924, num sanatório localizado em Klosterneuburg, na Áustria.
Sua família – e, em geral, amigos, como Milena Jesenská – foram assassinados pelos nazistas.