Carlos Lyra faleceu em 16 de dezembro no Rio de Janeiro – Foto: Reprodução
MARCUS VINICIUS DE ANDRADE
maestro e compositor
Vem, amor
Vem comigo ser livre
Vem comigo falar de amor
Cantar que o socialismo vive.
Vem, irmão,
Não se perca em modismo, não
Sem o socialismo, irmão
Não se pode nem falar de amor.
(CARLOS LYRA, em uma canção de
sua autoria que pouquíssimos conhecem)
Primeiras horas da manhã do sábado, 16 de dezembro. O celular impiedoso me desperta com uma chamada do Rio de Janeiro para avisar da morte do queridíssimo Carlinhos Lyra. Primeiro foi grande o susto, depois bateu forte a comoção: em menos de um minuto e sem que eu precisasse dar uma de Maysa, meu mundo caiu. Senti que o Brasil de repente ficara mais pobre e eu, assim como muitos de nós, mais tristes. O telefone não parou mais de tocar e, para atender às muitas solicitações que me chegavam, mesmo entre lágrimas fui revirar meus alfarrábios, inclusive os eletrônicos, para buscar, as informações que me pediam.
Foi quando, para aumentar minha emoção, encontrei um arquivo digital que continha uma gravação doméstica feita em cassete (alguém aí ainda sabe o que é isso?), na qual Carlinhos Lyra, ao violão, cantava a canção que serve de epígrafe ao presente texto. Ainda hoje não lembro como e onde esta gravação foi feita (mas foi há mais de quinze anos, disso estou certo) nem como ela chegou às minhas mãos. O fato é que, até os dias de hoje, guardei essa relíquia musical com chave de ouro, certo de que muitos poucos a conheciam, embora dela tivessem ouvido falar. Proseando há alguns anos com o próprio Carlinhos, ele me confirmou que havia composto e gravado a música com orgulho, inclusive a sua parte final falada, em que dizia: “Eu fiz esta música porque acredito no samba, no amor e no socialismo.” Confessou que não tinha conhecimento (como eu) do destino do seu trabalho, mas, a julgar pela ‘consigna’ final da gravação, ela poderia ter sido utilizada ou inserida em alguma manifestação política – o que não deixava de causar-lhe receios de retaliações por parte de uma direita troglodita que jamais deixou de existir no Brasil. Como hoje percebemos, aliás.
O que chama a atenção nesse episódio é o fato de que, embora saibamos da existência de muitos artistas progressistas em nossa história musical, alguns dos quais com discursos radicais, condoreiros ou inflamados – estilo carcará: pega, mata e come –, jamais soubéramos de algum compositor ou cantor que declarasse abertamente sua profissão de fé socialista, como fez o nosso Carlinhos Lyra com a voz mansa e serena dos justos e bons. (Minto: no começo dos anos 1960, Juca Chaves havia dito o mesmo numa canção intitulada Auto-Retrato. Só que, na época, o Golpe de 64 ainda não havia dado o ar de sua desgraça, muito menos a baba raivosa dos arautos do futuro AI-5 se fazia pressentir, além de que o próprio Juquinha costumava apresentar-se como um humorista de carteirinha, em razão do que suas afirmações não eram levadas muito a sério).
Tudo isso nos leva também a refletir sobre a figura equilibrada, calma e discreta que o Carlinhos exibia na vida, nas canções e no palco, sob a qual não se percebia, à primeira vista, o militante político que ele era, vez por outra carbonário na defesa das questões nacionais e/ou das lutas populares do país, aí incluídas as reivindicações profissionais da classe musical e as discussões sobre as opções estéticas que a Música Brasileira deveria assumir na efervescência criadora dos anos 1960. Podia parecer que não, mas a maior parte desses eventos teve o estopim silencioso do pensamento e da ação do nosso Carlinhos Lyra.
A politização da Bossa Nova foi uma das iniciativas tomadas por Lyra junto aos compositores e intérpretes do movimento que se iniciava, principalmente os que integravam a primeira geração bossanovista, a da chamada Bossa Nova Intimista. Em muitos registros de imprensa, Carlinhos revelou (com certo orgulho, aliás) ter arregimentado nomes como Vinicius de Moraes e Geraldo Vandré para o projeto do que se chamaria Bossa Nova Nacionalista. Ainda que reconhecesse que seu parceiro Vinicius tivera importante participação na consolidação do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, dado seu envolvimento com o pessoal do órgão, Carlinhos se divertia ao lembrar que Vandré teria sido politizado durante essa ocasião: “- Geraldo era um advogado cantador de bolero, que não tinha nada a ver com política. Fui eu que arrastei ele.” (Pura verdade: enquanto cantava boleros, Geraldo se apresentava com o nome de Carlos Dias, que juntava a menção a seu ídolo, Carlos José, a seu sobrenome verdadeiro. Depois de “politizado”, ele passou a usar Vandré, abreviatura do sobrenome de seu pai, o médico paraibano José Vandregíselo).
A liderança de Carlinhos Lyra também se fazia notar nas questões musicais propriamente ditas. Embora nenhuma de suas obras estivesse presente no disco Canção do Amor Demais, gravado pela “Divina” Elizeth Cardoso em 1959 e considerado o Marco Zero da Bossa Nova, Carlinhos participou do lendário concerto bossanovístico no Carnegie Hall, em Nova Iorque. E já nos três primeiros LPs de João Gilberto, Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), Carlinhos compareceu com sete obras magnas de sua autoria, as quais, somadas a outras canções de sua lavra e gravadas por intérpretes como Sylvia Telles, Nara Leão, Agostinho dos Santos, Astrud Gilberto e muitos mais, iriam constituir parte fundamental do que ainda hoje é listado como o repertório-base da Bossa Nova brasileira. Em algumas dessas obras, como Influencia do Jazz e Maria Ninguém (que Jacqueline Kennedy costumava cantarolar nos corredores da Casa Branca junto com o Barquinho de Menescal & Boscoli, outra preferida sua) Carlinhos era, simultaneamente, compositor e letrista – bom, por sinal.
Roberto Menescal, Ana Lúcia, o conjunto de Oscar Castro Neves, Carlos Lyra (cantando), Noramndo e Chico Feitosa durante o Festival no Carnegie Hall em 1962 – Foto: Dan Blaweiss/Divulgação
Ainda que a origem do termo Bossa Nova seja controversa, ora sendo atribuída a Zé Carioca (músico do conjunto Bando da Lua, que acompanhava Carmen Miranda nos EUA e usava o termo para designar qualquer novidade diferenciada), ora a Sergio Porto (o célebre cronista Stanislaw Ponte Preta, que o ouvira de um engraxate e o implantara em sua família, o que é firmado e juramentado por sua prima Maria Lucia Rangel, por sinal filha do crítico musical Lucio Rangel, também cúmplice da versão), há também quem a atribua a Carlinhos Lyra: na realização do primeiro show de Bossa Nova, no Clube Hebraico do Rio de Janeiro, sem saber quem eram os músicos que acompanhariam o espetáculo, o produtor Moysés Fucks os designara como “uma turma bossa nova”, prova de que o termo já estava pegando na cidade. Ante o descontentamento de uns e a omissão de outros participantes, Carlinhos Lyra e Roberto Menescal autorizaram Fucks e cravaram: “- Olha, na falta de outro nome, fica esse mesmo.” E assim se fez. O nome pegou, inclusive internacionalmente, mas a matéria ainda hoje rende infindáveis arranca-rabos entre filólogos da boemia carioca.
Antes de fazer sucesso no disco, Carlinhos, que na área musical “brincava nas onze”, já mostrara suas credenciais na música para cinema e teatro: era dele a trilha do premiadíssimo curta Couro de Gato, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e produzido pelo CPC da UNE para o longa Cinco Vezes Favela (1962). A música principal do filme, Quem Quiser Encontrar o Amor, foi uma das primeiras parcerias entre o Lyra de quem ora falamos e aquele cantor de boleros que se denominava Carlos Dias antes de mudar seu codinome para Geraldo Vandré e sair da clandestinidade musical. Em 1963, talvez em razão da temática da favela estar em alta na dramaturgia, foi produzido o filme Gimba, em que Flávio Rangel fazia sua estreia na direção cinematográfica. Baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri, o filme também tinha música de Carlinhos Lyra, que aproveitou os versos de Guarnieri para compor Feio não é bonito, logo transformado em êxito nacional e uma das canções-chave da Bossa Nova nacionalista.
No teatro, uma das principais realizações de Carlinhos Lyra foi a criação da trilha do espetáculo Pobre Menina Rica, em que contou com a parceria sonora de Dulce Nunes, além do texto e dos versos de Vinicius de Moraes. Prevista para ser um dos sucessos da temporada de 1964, talvez em razão das atribulações trazidas pelo golpe militar de abril daquele ano, a peça acabou por não chegar aos palcos. Dela ficou, porém, um belíssimo LP, em que, além da Direção Musical de Radamés Gnattali, havia também preciosidades como Primavera, Sabe Você, Samba do Carioca, Canção do Amor que Chegou, Broto Triste, Maria Moita e outras, que logo se incorporaram, merecidamente e com facilidade, ao melhor do cancioneiro popular brasileiro. Onde se encontram até hoje.
Por tudo que até aqui falamos, daria pra ver que nos primeiros anos da década de 1960, sem perder a ternura jamais, Carlos Lyra já havia se mudado de mala e cuia para a música engajada, fincando sua bandeira junto aos artistas do CPC da UNE e também junto aos músicos populares e sambistas dos morros e subúrbios cariocas – em prol de quem talvez tenha escrito seu clássico Influência do Jazz, em que, de forma bem-humorada e jamais amarga, apontava os excessos daquele samba que “foi se misturando, se modernizando e se perdeu.” Muitos viram nisso um radicalismo nacionalizante e ideologicamente à esquerda, a ponto de dizer-se que Carlinhos havia se afastado de Jobim, Menescal e outros bossanovistas por estes serem supostamente “de direita”, episódio e rompimento que jamais ocorreram, como se sabe. Mas naqueles tempos pré-64, quando em toda parte se via comunismo e comunistas (só faltavam dizer que até o Núncio Apóstólico tinha carteirinha do Partido), as animosidades e provocações políticas estavam a pleno vapor e a convivência democrática era efetivamente tensa. Embora sem jamais fazer alarde ou proselitismo de suas posições à esquerda, Carlinhos Lyra jamais deixou de demonstrar seu vínculo com o CPC da UNE, para o qual compôs, ao lado do dramaturgo Chico de Assis, a Canção do Subdesenvolvido, espécie de ícone musical daquela época. Ele também jamais deixou de marchar com as forças progressistas da nação na luta contra o obscurantismo, como ele próprio registrou no livro Eu & a bossa, (publicado em 2008), ao relembrar a tomada da UNE pelos esbirros da ditadura que se preparava:
“Entre a noite de 31 de março e a manhã de 1º de abril nos foi pregada a maior peça de que jamais tivemos memória. Por volta das nove horas daquela noite, cheguei à sede da UNE. Junto ao portão principal da sede, achavam-se Vianinha e outros participantes do CPC. Já haviam chegado cerca de duzentas pessoas, entre artistas, intelectuais e estudantes que vinham prestar solidariedade a esses últimos que acabavam de sofrer ali mesmo um atentado por parte do MAC (Movimento Anticomunista) composto por estudantes da direita radical (…). Mal acabamos de entrar, ouvimos o ruído seco e aterrador dos tiros de metralhadora (…). Quando mais tarde tentamos voltar ao prédio da UNE, nem sequer podíamos nos aproximar. Os componentes do MAC haviam retornado ao local e, diante da total impassibilidade dos fuzileiros navais, atearam fogo ao prédio (…). Pessoalmente, tenho sérias dúvidas de qual seria, dali pra frente, a maior ameaça: a ditadura militar ou a mediocridade que, aproveitando-se da ditadura, estabeleceu-se em todas as áreas da cultura (…). Em conversa com o amigo e jornalista Jânio de Freitas – uma espécie de conselheiro artístico e guru político -, ouvi dele: ‘Numa hora dessas, ou se pega em armas ou se pega um avião’”.
Incêndio à Sede da UNE no início da ditadura no Brasil – Foto: Reprodução
Carlinhos resolveu pegar um avião. Partiu para um auto-exílio no México e nos EUA, onde deu início a uma destacada carreira musical internacional, ao lado de grandes nomes da música, como Paul Winter, Stan Getz e outros. O resto da história todos conhecem. Ao regressar definitivamente ao Brasil, em 1976, já casado com a atriz e modelo norte-americana Kate Lyra (aquela do “brasileiro é tão bonzinho…”), Carlinhos continuou a fazer aquilo que de melhor sabia fazer: compor. Para tanto, buscou novos parceiros como Chico Buarque, Ruy Guerra e, mais recentemente, Joyce Moreno, Paulo César Pinheiro e Aldir Blanc, com o qual escreveu a trilha do bem-sucedido musical Era no Tempo do Rei.
Mas há quem pergunte por que o Carlinhos Lyra dos últimos tempos não mais teria composto obras do mesmo quilate dos seus antigos standards. Não é bem assim: o acima citado Ruy Castro entende que Carlinhos não perdeu a inspiração, o mercado é que não quer saber mais dele ou de quem faça música de qualidade. Eu concordo com o Ruy e vou adiante: quem perdeu a inspiração foi o próprio mercado – e o público de hoje, convenhamos… também não é lá essas coisas.
Rememorar Carlinhos Lyra talvez seja a melhor forma de começarmos a superar a mediocridade que hoje reina nos quatro cantos do país… ou do planeta, quem sabe? Mesmo com tudo que está aí, no entanto é preciso viver para voltarmos a crer que é possível alguém ser talentoso, inteligente, bem humorado, discreto, boa-pinta, bom caráter etc., como muitos (ou todos) brasileiros gostariam de ser. Teve um que conseguiu.
Adivinha quem!