Afirma sempre Pereira

PAOLO DI PAOLO (*)

 

Há trinta anos, era lançado o romance de Antonio Tabucchi que se tornou uma questão mais política do que literária. Porque denunciava o revanchismo fascista.

Era uma vez um país no qual um romance se tornava um caso político. Pode ser que a história de um jornalista de Portugal com problemas cardíacos, sob a ditadura de Salazar, tenha se tornado o detonador de uma furiosa polêmica entre apoiadores e críticos de Berlusconi. E que as reações à uma história de ficção fossem ferozes, ideologicamente ferozes.

Descrevendo “Afirma Pereira” como um livro “abstrato, falso, previsível” nas colunas do Giornale, recentemente órfão de Montanelli1, o escritor Luca Doninelli lançou o livro de Antonio Tabucchi no meio de uma batalha acirrada. Extra-literário? Sim e não. Com certeza, fortemente condicionado pelo novo clima político: era o início do ano de 1994. Silvio Berlusconi, tendo anunciado sua entrada em campo, se preparava para assumir o cargo de primeiro-ministro pela primeira vez.

É um ano de bestsellers: “Vá Aonde seu Coração Mandar2, “Jack Frusciante Saiu do Grupo3. É o ano de estreia de [Niccolò] Ammaniti. E, além disso, “Afirma Pereira”: uma invenção feliz de um grande admirador da cultura lusitana, já consagrado como narrador. Tabucchi alcança o grande público e a fama internacional – meio milhão de exemplares em pouco tempo, o filme de Faenza com Mastroianni – narrando o despertar de uma consciência.

O cronista cansado que percorre Lisboa comendo omeletes e bebendo limonadas encontra um jovem militante e não enxerga nele apenas um filho que nunca teve: se deixa levar por sua paixão política e pelo perigo. Por outro lado, conversando no trem com uma senhora que lia Thomas Mann, o pobre Pereira sentiu-se repreendido: “Faça alguma coisa…O senhor é um intelectual, conte o que está acontecendo na Europa, expresse seu livre pensamento, enfim, faça alguma coisa”. Pereira queria se justificar, dizer que estão todos de mãos atadas, que acima dele havia um diretor ligado ao regime, que a zeladora de seu prédio era informante da polícia. Não disse nada, apenas respondeu que faria o seu melhor.

Com efeito, em determinado momento, Pereira tem sua chance: se encoraja, protege a quem luta contra a ditadura, colocando em apuros o tipógrafo do jornal para o qual escreve. Até por esse detalhe se fez barulho, alguns anos mais tarde: entre Tabucchi e seu colega Franco Cordelli. Este último criticou Pereira e seu autor por terem dado espaço a um gesto covarde ou irresponsável: essencialmente, uma traição. Tabucchi respondeu na mesma moeda. Assim como o fez com quem o acusava de escrever um “panfleto eleitoral” anti-Berlusconi travestido de romance: se por um lado não se importava que a literatura inflamasse ânimos e controvérsias, por outro, era obrigado a lembrar que concluiu o projeto no verão de 1993, antes do anúncio da chegada do “Cavaliere”4 à política.

Na verdade, ao ambientar a história em 1938, pretendia relembrar de longe certas “regurgitações” sombrias na Itália e na Europa. Um fascismo global imutável, uma onda sombria que nunca se extingue completamente e que também é alimentada pela indiferença de muitos. O que diria Tabucchi diante dos braços levantados na rua Acca Larentia5 ou o casamento neonazista celebrado em Varese6? Que a direita italiana – assim escreveu ele – continua a olhar para o fascismo “com renovado carinho”?

No dia 25 de Abril de 2001 – enquanto Francesco Cossiga pedia a dissolução da Forza Nuova – Tabucchi enviou uma carta aberta ao Presidente da República, Carlo Ciampi: “É um momento muito grave, e os cidadãos não podem ser indiferentes à escolha entre o fascismo e o antifascismo, nem mesmo equidistantes ou neutros. A nossa democracia é jovem e frágil, é necessário dedicar-lhe a máxima vigilância”. Um combativo espírito antifascista inspirou também um romance de poucos anos depois, “Tristano Morre”. No calor de agosto, um homem com a perna gangrenada acerta contas com o século XX, que acabava de terminar. Giuliano Ferrara, do [jornal] Foglio, encomendou sete críticas consecutivas. Eu pedi ao guardião do Fundo Tabucchi, em Paris, para que pudesse lê-las. Páginas atrofiadas e embaraçosas denunciavam os sete críticos; um em particular falava desdenhosamente sobre uma “resistência desordenada”. Ao reler, com dez anos de distância, essas peças patéticas, surge uma pergunta: por que Ferrara e os críticos estavam tão irritados?

Em uma página de “Tristano Morre”, Tabucchi escreve com sarcasmo: “O povo italiano sempre combateu o fascismo, sempre, o povo italiano nunca sonhou em ser fascista… Fui eu quem sonhou, pensa Tristano, eu lutava contra ninguém, os fascistas nunca existiram, eu que os imaginei…”

Mas não, eles existiram. Existia aquela Europa que – como lemos em “Afirma Pereira” – cheirava a morte. O velho jornalista com problemas cardíacos não tem nem o nariz nem os olhos fechados, mas a idade e a inércia o fazem parecer congelado. Mas os dois jovens dissidentes que entram em sua vida lhe trazem uma dúvida: e se eles estiverem certos? “Nesse caso, eles estariam certos, disse calmamente o doutor Cardoso, mas é a história que o dirá e não o senhor, doutor Pereira. Sim, disse Pereira, mas se eles estiverem certos, minha vida não teria sentido.” Colocado diante da tortura que o partigiano Monteiro Rossi sofre em uma emboscada, Pereira não pode mais adiar seu encontro com a escolha. Esquece-se do próprio medo. Coloca de volta em campo aquilo que Herta Müller definiu como “o impenetrável equilíbrio entre a dignidade e a submissão”. Faz sua escolha. E lembra a si mesmo de que não há tempo a perder.

(*) Publicado originalmente no jornal italiano La Repubblica; traduzido para o português por Luísa Lopes.

 

1 Jornal italiano de direita que, em dezembro de 1993, foi vendido por seu fundador Indro Montanelli para Silvio Berlusconi.

2 Romance de Susanna Tamaro.

3 Romance de Enrico Brizzi.

4 “Il Cavaliere”, como Silvio Berlusconi foi apelidado.

5 Manifestação neo-fascista ocorrida no dia 07 de janeiro de 2024, em Roma.

6 Também ocorrido em 2024.